20.8.03

A estratégia do caos

Olá Filipe! Sê benvindo a este espaço! Sei que ele vai ficar a ganhar com a tua chegada!

Ontem, porém, o Mundo ficou mais pobre. Perderam-se vidas inocentes em Baghdad e Jerusalem e, entre elas, a de, pelo menos, um homem bom. A morte de Sérgio Vieira de Mello não só deixa o Mundo mais pobre, como priva a ONU daquele que Ana Gomes considerava ser o seu "melhor funcionário". E deixa a utopia do respeito pelos direitos humanos, mais longínqua.

Não conhecia Sérgio Vieira de Mello a não ser da televisão. Vi-o, em meados de Abril, em plena conquista do Iraque, no HARDtalk, da BBC News. Entrevistado pelo durí­ssimo Tim Sebastian, Sérgio Vieira de Mello explicava aquele que poderia ser o papel da ONU no pós-guerra que estava a chegar. Calmo, ponderado, diplomata, lá foi dizendo que a manutenção da ordem e da segurança era responsabilidade dos EUA e dos seus aliados.

Sérgio Vieira de Mello morreu porque, quatro meses passados sobre o fim da guerra, os EUA são incapazes de manter a ordem pública no Iraque. Como, aliás, têm sido incapazes de manter a ordem pública no Afeganistão.

Que não fiquem dúvidas a ninguém: creio convictamente que o atentado de ontem foi uma acto cobarde e hediondo, injustificável a todos os tí­tulos. Os seus autores devem ser encontrados e entregues à justiça e devem pagar pelos seus actos. Não sinto a mí­nima simpatia pelo acto, nem pelos seus autores. Não festejei, antes chorei, as mortes de ontem.

Mas há que buscar mais fundo. Para que a verdade e a honestidade não pereçam também entre os escombros.

O atentado de ontem é uma prova evidente da nova estratégia das forças anti-Americanas: mostrar ao Mundo que os EUA são incapazes de assegurar a ordem pública e assustar e afugentar as agências humanitárias envolvidas na reconstrução do Iraque. Inscreve-se no padrão de recentes atentados contra condutas de petróleo e, mais recentemente, contra a Embaixada da Jordânia em Baghdad. No entanto, a existência deste padrão não é suficiente para garantir que os seus autores são os mesmos.

Temos assistido nas últimas semanas a ataques quase diários contra os militares americanos. Nós e os próprios americanos já nos costumávamos a habituar... nessa atitude terrí­vel que é a da vulgarização da morte. No entanto, o atentado de ontem veio mostrar que as forças que se opõem aos EUA no Iraque, sejam lá quais forem as suas origens e crenças, não querem apenas matar soldados americanos e seus aliados: querem espalhar o medo!

O Presidente Bush respondeu à moda do Texas, onde se encontrava de férias, a jogar uma partida de golf: «every sign of progress in Iraq adds to the desperation of the terrorists and the remnants of Saddam's brutal regime. The civilized world will not be intimidated, and these killers will not determine the future of Iraq». De acordo com aquilo que tem sido a sua estratégia, George Bush quis colocar-nos a todos como vítimas dos atentados, dizendo que os autores do atentado são inimigos de todas as nações que pretendem ajudar o povo iraquiano. De um certo modo, tem razão...

Mas a verdade é que a situação americana é complexa: se os iraquianos tiverem medo e se sentirem inseguros, não vendo a sua situação melhorar, a sua hostilidade em relação aos americanos pode aumentar.

De facto, estes ataques parecem dirigir-se sobretudo a impedir a melhoria da qualidade de vida dos iraquianos. Ao negarem a capacidade das forças de ocupação para pacificar o Iraque, estes ataques impedem os americanos de conquistarem os corações e a confiança dos iraquianos. Se o caos se mantiver, a reconstrução do Iraque não pode avançar.

A autoria do atentado ainda não foi reivindicada e, por isso, não é ainda claro se os seus autores são os resistentes do antigo regime ou se, pelo contrário, se tratam de fervorosos muçulmanos vindos de outros paí­ses para matar americanos. Os atentados com carros e camiões armadilhados têm a sua origem algures entre os movimentos religiosos terroristas do Médio Oriente, tais como o Hezbollah. Mas nos últimos anos esta táctica tem-se alargado e foi já utilizada nos ataques contra as embaixadas americanas no Quénia e na Tanzânia, em 1998, que todos atribuem à Al Qaeda.

Não se deve afastar totalmente a possibilidade do atentado ter sido perpretado por elementos ligados ao regime de Saddam Hussein, mas a verdade é que vários oficiais americanos já admitiram que vários elementos do Ansar al-Islam se terão refugiado no Irão durante a guerra e estarão agora a regressar.

O Ansar al-Islam é um pequeno grupo fundamentalista acusado de ter ligações à Al Qaeda. Actua na clandestinidade e é integrado por iraquianos insatisfeitos (já desde o regime anterior) e muitos estrangeiros que querem integrar a "guerra santa" contra os militares americanos e os seus interesses no Iraque.

Será que a invasão e ocupação do Iraque, para além da violência gratuita (que terá provocado muitas mortes sob os escombros), da ilegalidade à luz do direito internacional, da justificação forjada e do não aparecimento das invocadas armas de destruição massiva, ainda irá criar um terreno propí­cio ao fundamentalismo islâmico e ao terrorismo da Al Qaeda?

Deus nos livre, senhor Bush!