19.6.06

(do Índico)

A turbulencia comeca no Mali, pouco antes do Burkina Faso. A 33 mil pés, os contrastes de um continente passam despercebidos, na noite escura. (16.6)

O passaporte está já carimbado e com visto, mas o funcionário da alfandega quer olhar para ele - "e nao tem nada a declarar?. Nao. "Estao cá de...?" ... férias. Tá feito: passamos sem mais. O bacalhau, o salpicao e o vinho para o Joao entram sem contrapartidas. (17.6)

Na ilha da Inhaca, o computador onde escrevo tem um teclado qwert acompanhado de caracteres árabes (e de mosquitos). Se calhar, há acentos como o til, mas assim nao o encontro. (19.6)

[este post pode ser ou nao actualizado, depende da vontade. ou da disponibilidade de comunicacoes.]

16.6.06

[uma pausa]


De partida para férias fica o prazer da conversa. Aqui - e com os amigos, novos e velhos [e podem ir pelos vossos próprios dedos, visitar as casas do lado, que eles também ali moram]. Uma pausa assim parece mais pequena e os dias, todos os dias, serão para lembrar. Ou rir. Ou viajar. Ou o que fizermos deles. Voltamos já.

[mais uma imagem de Um livro para todos os dias, de Isabel Martins e Bernardo Carvalho, ed. Planeta Tangerina]

15.6.06

Inverno por Inverno

Se a chuva teima em deixar o sol de férias, mais vale ir gozar outro Inverno. Faltam menos de 24 horas.

Sem dias

populares em Alcoutim, a aguardar o "Sr. Presidente da República" [foto Lusa]

Cavaco está há 100 dias em Belém. Como disse? Um veto ideológico, um roteiro no interior algarvio e alentejano. "Pedimos desculpa pelo incómodo, prometemos ser breves" é um lema possível para estes 100 dias.

Músicas de todos os dias

Já aqui disse: é um dos meus blogues preferidos de música. Para recordar ou conhecer coisas novas. Tem de tudo. Agora, que estamos quase de partida, bem podem ir ali e descarregar muito bom gosto.

Eles voltaram a florir


José Estêvão volta a ter por companhia os jacarandás floridos. A prova fotográfica foi-me enviada pela Isa e pelo Filipe.

14.6.06

Poesia [modo prático]

Na cidade caótica, de buzinas, manifs e chuva, descubro que os jacarandás também abrigam da chuva.

[trovões]

Por instantes, chove. A roupa foi recolhida a tempo. E cheira a terra. Mais tarde, quando o céu troveja de novo, é apenas o foguetório dos santos. Não há terra para cheirar.
[E depois. Nem meia-hora depois, das entranhas do céu despertou uma violenta tempestade. O dia nasceu mais cedo. A terra e o cheiro a terra ficaram do outro lado do vidro.]

13.6.06

B.I.

A palavra "marine" na t-shirt não quer dizer mais nada. Sou Marujo pela parte do pai.

KO!


[imagem de Um livro para todos os dias, de Isabel Martins e Bernardo Carvalho, ed. Planeta Tangerina]

Bandeiras

"Uma centena de bandeiras de Portugal foram apreendidas pela PSP num estabelecimento de Viseu, por conterem inscrições de marcas comerciais que poderão ser consideradas ultraje a símbolo nacional, disse hoje à agência Lusa fonte judicial." Espera-se idêntico procedimento com as bandeiras distribuídas há dias pelo Expresso/BES.

Visitas

A SIC Notícias informa-nos que Bush está no Iraque (não sairá da "zona verde"), "a segunda vez que o presidente americano visita o país, da primeira não saiu do aeroporto". Fiquei contente: posso acrescentar à lista de países visitados por mim o Qatar e a Índia.

Crises

A avaliar pelo número de vezes que fui ao Parque Eduardo VII e a quantidade de livros comprados, temos de dar crédito aos feirantes. A crise está aí.

[phonus interrumptus]

- Ligas muito, mas não falas.

Lá foi Lisboa

As marchas desfilavam na Avenida e nós lá em cima, a subir e descer a Feira do Livro. É o mesmo todos os anos, repete-se ad nauseum. Sem que ninguém pareça importar-se. Falo da feira. E do Santo António. Fugimos às sardinhas e vai bife com ovo e batata frita. Ao descer às festas, os desvios são grandes, os lugares de estacionamento escassos. Metemos marcha atrás e voltamos a casa. Na televisão ainda passam as marchas, atrás de casa ainda há bailarico. O Santo António não se importa.

12.6.06

Portugal-Angola (ou Inglaterra)

«POST-GAME THOUGHTS
Angola can hold their heads up having kept it close against a Portuguese team packed with talented attacking players. While Portugal may have eased up a bit in the second half and played to protect their lead, this was nothing like the English performance yesterday. Portugal created a bunch of good chances and kept on the attack almost to the end. Plus, of course, they scored the goal they won by themselves.»
[in New York Times]

11.6.06

O fado como pretexto em noite de sereias

Ulisses enfrentando as sereias. Óleo de Herbert James Draper.

Diz a lenda que Ulisses chegou à foz do Tejo. A noite de sábado quase que o confirmava: se no rio ainda morassem marinheiros, teriam ouvido encantos de sereia. Pelo Castelo de São Jorge, passou uma princesa, na voz e na emoção que pôs no seu regresso a Lisboa. Cristina Branco, que começou no fado na Holanda e, desde então, aventurou-se por outras águas até aportar em “Ulisses”, o seu último trabalho de originais, onde por vezes aquilo que se ouve se parece fado. Ali, por entre as sombras das árvores, num cenário deslumbrante (a cidade aos pés da colina), Cristina Branco deixou ainda várias dedicatórias a Lisboa, “mulher apaixonada”, e a Portugal, no dia de Camões.
Mas o castelo que foi dos mouros deixou-se a seguir invadir pela magia cinéfila de Rodrigo Leão. O pretexto também foi o fado, em mais uma noite da “Festa do Fado”, promovida pela Câmara Municipal de Lisboa, integrada nas festas da cidade. E quase que se ficciona uma banda sonora de um filme mudo, por entre os labirintos das escadas e becos de Alfama. Também se podem ouvir aquelas músicas por entre barcos de um porto mediterrânico — e Ulisses volta a espreitar das águas iluminadas do rio Tejo.
Sem as vozes femininas de “Alma Mater” e “Cinema”, o compositor e músico apresentou-se acompanhado por uma outra voz singular, a de Ana Vieira. Outro encanto.
Com o pretexto do encontro, Rodrigo Leão chamou ao palco Cristina Branco para a interpretação de “Redondo Vocábulo”, de José Afonso, e “Mudar”, um seu inédito de que ali ganhou voz.
Na noite, “Hoje o céu está mais azul,/ Eu sinto/Fecho os olhos, mesmo/assim/Eu sinto/O meu corpo estremecer/Não consigo adormecer”. Há viagens únicas. Ulisses chegou a Lisboa.


Rodrigo Leão e Cristina Branco

[texto no METRO desta segunda-feira]

O fado como pretexto

Noite perfeita. O Castelo, a lua cheia, a voz de Cristina Branco, o cinema de Rodrigo Leão. «Hoje o céu está mais azul,/ Eu sinto/Fecho os olhos, mesmo/assim/Eu sinto/O meu corpo estremecer/Não consigo adormecer». Há viagens únicas.

10.6.06

Jacarandás
[as árvores que os de fora gostam]

Em Aveiro, ao contrário do que me dizia a memória, há jacarandás. Rodeiam José Estêvão, na Praça da República. E floriram apenas no ano passado, contam-me a Isa e o Filipe, com o calor seco que atravessou os canais da ria. Ninguém terá registado esse momento, só ele, que também os admiraria à saída do Parlamento, se fossem já árvores de Lisboa no século XIX. Ficamo-nos por cá a admirá-los.

Cidade

Lisboa cheia de luz percorrida nos trilhos que os lisboetas pouco fazem, deixando lugar ao vozear constante de outras línguas. Subo ao Castelo, de autocarro para evitar a canícula. Espanhol, italiano, inglês, francês, alemão. E um casal adolescente português na idade da parvalheira. Depois desce-se a colina, chega-se à Baixa, vai suja a cidade, misturam-se as cores e os sabores de gentes de todo o lado, negros, brancos, árabes, católicos, pecadores, turistas, lisboetas, imigrantes, emigrantes, mendigos e indigentes, apressados e vagarosos. Num impulso tomo a direcção da Igreja de São Domingos. Não é sumptuosa, tem estatuária que a desfigura, velas que incomodam, preces que se queimam, mas as paredes negras e despidas do incêndio devolvem a beleza - das coisas simples. Da cidade em volta, luminosa.


9.6.06

Cromos [colecção rara]


Vanessa nas Maldivas


Vanessa em Singapura

[actualização: este post não é de gozo.]

A comichão de borboletas

Uma jornalista parte para uma viagem de dez dias em dez cidades europeias. E conta como é ter comichão.

8.6.06

Ferver

Dá-me para isto. Sorrisos do outro lado, ajudam a respirar. Mas deste lado não. É a véspera das grandes competições.

[as costas largas de deus]

Elas nunca estão nuas e elas nunca estão vestidas.

7.6.06

Agências de comunicação

Estão na ordem do dia, graças a Carrilho. E há razões para suspeitar de uma cabala, de facto: alunos da Portela fecharam a escola a cadeado e explicam as suas razões num comunicado enviado por... uma agência de comunicação. Ele há cada uma.

Um assassino

O senhor de extrema-direita que foi detido com armas e outros materiais proibidos e que diz querer combater a criminalidade de "estrangeiros" é um assassino condenado. Da Lusa, hoje, nos parágrafos finais da notícia: "Mário Machado é dirigente da Frente Nacional, um movimento que apoia o Partido Nacional Renovador e foi o organizador de manifestações recentes em Lisboa contra a criminalidade alegadamente desencadeada por imigrantes e em Vila de Rei contra a instalação de cidadãos brasileiros no concelho. Segurança de profissão, Mário Machado foi condenado em 1997 a uma pena de prisão de quatro anos e 3 meses por envolvimento na morte de Alcino Monteiro - crime de 1995, no Bairro Alto, que levou à condenação de 15 cabeças-rapadas. Mário Machado está actualmente a ser julgado no Tribunal da Boa-Hora, Lisboa, por extorsão, dois crimes de sequestro e posse ilegal de armas"

É só fumaça

Um incêndio em tempos na estação do metropolitano da Alameda começou com um cigarro. Hoje é proibido fumar no metro. Alguém nota?
Um cigarro nos bastidores do Coliseu do Porto provocou um incêndio. Já era proibido fumar em recintos fechados. Alguém ainda nota?
Agora, os donos dos restaurantes vão vigiar clientes e patrões vão decidir quem fuma. Alguém vai notar?

A minha fase punk

Sair do banho com o cabelo todo espetado.

Outros, a respigar

«Sinceramente, eu penso que a coisa passou um bocado despercebida ao nosso jornalismo, tirando claro está o António Marujo. E passou também despercebida à blogosfera, até mesmo à nossa teosfera. Pois foi mesmo uma coisa espantosa. Quem melhor captou o sentido profundo daquilo que o papa Bento XVI fez e disse naquele lugar, foi Bénard da Costa, o homem que saiu da Igreja Católica na Nacional 1 quando viu passar o papa Paulo VI dirigindo-se a Fátima e a Salazar que lá o esperava.» A Terra, de regresso(s).

6.6.06

Respigadores

Às vezes, é importante parar e respigar um texto como o que aqui postámos antes. Bénard da Costa escreve um belíssimo texto sobre os horrores e os silêncios. Para que não caísse também esse texto no silêncio (selectiva blogosfera, que desdenha a pausa prolongada para a reflexão), publicámos na íntegra a prosa.

Respigar do silêncio

Bento XVI e os terríveis silêncios
João Bénard da Costa, crónica de sábado passado no Público [A CASA ENCANTADA]

“Se Deus existe, odeio-O”, diz uma personagem de Bergman quando a querem fazer aceitar, na morte do amado, a vontade de Deus. Será blasfémia? Quantos não terão dito ou sentido o mesmo no horror de Auschwitz? Mas foi nesse horror que uma rapariga de 27 anos escreveu esta coisa enorme, tão enorme como as palavras do Papa: “Se Deus deixar de me ajudar, eu estarei aqui para ajudar Deus”.

1. No Verão de 1980, estive uns dias na Polónia, cerca de dois meses antes das grandes greves de Gdansk, dos dias heróicos do Solidariedade e de Lech Walesa.
A bem dizer, a electricidade sentia-se no ar. Não dei muito por ela em Varsóvia, que me pareceu o cenário de um filme que se tivesse passado em Varsóvia antes de 1939, num jogo de espelhos semelhante ao do início de To Be or Not To Be, o mais genial filme de Lubitsch, precisa e não casualmente situado na Polónia, quando esse cenário começou a desabar.
Mas em Cracóvia pressenti encontros marcados com a História. Não, não estou a querer dizer que a Virgem Negra me tenha confiado o segredo da espatifação das “democracias populares” em menos de uma década. Ainda não conhecia videntes, nem o vitreator de Santa Maria, nem ouvira interromper-se, tão súbita quanto suavemente, a nota aguda da torre de vigia, em memória daquele que, atingido pelas setas dos tártaros, não pôde continuar a avisar do que se ia seguir. Mal conhecia a Dama de Arminho de Leonardo, cujo vago espanto e alguma perplexidade sempre me pareceram amaciar a áspera beleza dessa cidade onde os reis apenas vinham para ser coroados ou enterrados.
Também eu lá cheguei dois anos após uma coroação (mais coisa menos coisa), quando Wojtyla se tornou no Papa polaco e abriu uma era nova. Também eu lá cheguei muito antes de um enterro. Enquanto lá estive, foi dia do Corpo de Deus. E, à excepção de Sevilha, eu nunca vira em vida minha uma tal manifestação religiosa nas ruas, uma tão ostensiva afirmação do poder da Igreja Católica, Apostólica e Romana. À volta, podia haver ainda foices e martelos, estátuas de Lenine ou dos soldados soviéticos. Tudo isso era já paisagem, frente aos báculos e mitras, às cruzes e altares e à efígie de S. S. João Paulo II por toda a parte e em todos os centros. Um ano antes, João Paulo II, na primeira viagem papal à Polónia, fora visto e ouvido por mais de um milhão de polacos e durante nove dias falara em público trinta e duas vezes. Cracóvia, em 1980, era mais papal que Roma.

2. Lembrei-me muito desses delírios e dessas apoteoses durante a recente viagem de Bento XVI ao país do seu antecessor. Ainda não passaram três décadas e tanto, tanto mudou. É verdade que, a 28 de Maio, o “Papa alemão” celebrou missa, diz-se que para 900 mil pessoas, em Cracóvia. Mas a imagem que irá ficar desta visita não será por certo a de um homem de branco que sabia possível – ou que acreditava possível – a libertação dos seus compatriotas. Bento XVI já não chegou nem como libertador nem como arauto dessa libertação, da qual aliás, pela sua própria nacionalidade, dificilmente seria o símbolo vibrante que o seu antecessor pôde ser. Agora, a imagem do Papa foi sobretudo a imagem de um homem só, na terrível solidão de Auschwitz. Se, de 1979, recordamos, primordialmente, a festa e a explosão de alegria a custo contida, de 2006 recordaremos, mais do que o Papa em Cracóvia, o Papa em Auschwitz. Nas nossas memórias futuras, não o veremos, como João Paulo II, imerso na multidão, mas sozinho e inclinado, no pórtico do que simbolicamente assinala o maior horror que a humanidade conheceu.
Foi-o? A simples pergunta já é, para muitos, blasfémia máxima, porque é isso exactamente que se pretende que seja: o lugar do incomparável horror. Mas por mim confesso que essa insistência extrema me põe questões difíceis e que não sei como se comparam graus de horror. As leituras políticas das palavras e da presença de Bento XVI – e certamente que leituras dessas eram inevitáveis – escandalizam-me. Houve quem sublinhasse que o Papa tinha dito “shoah”, termo nunca ouvido da boca do seu antecessor, mas houve quem achasse que atribuir o holocausto a um “grupo de criminosos” era secundarizar a responsabilidade do povo alemão. Há sempre quem tenha cabeças ou corações frios, para o bem e para o mal. Noto-o, mas não me denoto.
Porque, depois daqueles momentos em que o Papa rezou sozinho, levemente agitado pelo vento, junto ao muro dos fuzilamentos, as palavras supremas de Bento XVI foram aquelas em que disse (cito dos jornais): “Num lugar como este, as palavras falham. No fim, só pode haver um terrível silêncio, um silêncio que é um sentido grito dirigido a Deus: porquê, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que esteve Ele silencioso? Como pôde permitir esta matança sem fim, este triunfo do demónio?”

3. Que o Vigário de Cristo na Terra – ou aquele que crê e que muitos crêem ser o Vigário de Cristo na Terra – se dirija a esse mesmo Cristo, Deus Nosso Senhor, para Lhe perguntar por que ficou silencioso, onde estava, como tolerou aquilo, é talvez o que de mais ousado e abissalmente radical me lembro de ter ouvido da boca de um Papa.
Todos conhecemos os paradoxos sobre Deus, que se é Todo Poderoso não é Todo Bondoso ou se é Todo Bondoso não é Todo Poderoso. Uma célebre passagem dos Irmãos Karamazoff foi citada nos últimos séculos vezes sem conta e vezes sem conta nos atiçaram com a história do Grande Inquisidor ou com a morte de Ivan Illich. Mas essas dúvidas, essas interrogações abissais, vinham de fora para dentro ou das margens para o centro. Em Maio de 2006, em Auschwitz, a questão veio do próprio Centro e a terrível pergunta sobre o silêncio de Deus foi a terrível palavra de um Papa.
Mas não podemos dizer que foi Bento XVI o mais terrível interrogador. Dois mil antes dele, na Cruz, Aquele que ele representa interpelou Deus – que Ele também era – da mesma maneira: “Eli, Eli, lamma sabachtani?” (“Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?”). E nunca ninguém encontrou resposta para essa pergunta impossível, em que o próprio Deus se sentiu abandonado pelo próprio Deus. A quem, ou com quem, falava Jesus Cristo na Cruz? Quem O ouvia ou quem O não ouvia? Quem não O podia ouvir ou quem não O queria ouvir? E a nossa única fuga perante estas terríveis questões é a que consiste em responder que todas elas são vazias de sentido, pois que nada que se diga sobre Deus pode ter sentido. Como escreveu Simone Weil: “Caso de contraditórios verdadeiros. Deus existe, Deus não existe. Qual o problema? Tenho a absoluta certeza que Deus existe, no sentido em que tenho a absoluta certeza que o meu amor não é uma ilusão. Mas tenho a absoluta certeza que Deus não existe, no sentido em que tenho a absoluta certeza que nada de real se assemelha ao que posso conceber quando pronuncio esse nome. Só que o que não posso conceber não é uma ilusão.”
E foi ainda Simone Weil quem sobre o mal (“o triunfo do demónio” como lhe chamou o Papa) escreveu o que ainda mais me faz deter: “Quando se ama Deus através do mal enquanto tal, ama-se verdadeiramente a Deus.” Ou: “Amar Deus através do mal como tal. Amar Deus através do mal que se execra, execrando esse mal. Amar Deus como autor do mal que estamos a execrar.”
Mas voltemos ao mistério de Deus com Deus. Não é dele ainda que nos fala S. Paulo (II, Cor, 12, 7-10) quando disse aos Coríntios que por três vezes pediu a Deus que dele se afastasse? Mas Deus lhe respondeu: “A minha Graça te basta. Porque o meu poder se manifesta na fraqueza” (“virtus in infirmitate perficitur”, como diz a Vulgata).
“Se Deus existe, odeio-O”, diz uma personagem de Bergman quando a querem fazer aceitar, na morte do amado, a vontade de Deus. Será blasfémia? Quantos não terão dito, ou sentido o mesmo, no horror de Auschwitz? Mas foi nesse horror – aprendi-o há bem pouco tempo – que uma rapariga de vinte e sete anos, que mais procurou Auschwitz do que lhe fugiu, escreveu esta coisa enorme, tão enorme como as palavras do Papa: “Se Deus deixar de me ajudar, eu estarei aqui para ajudar Deus.”

4. Refiro-me a Etty Hillesum, uma jovem holandesa que só conheço de passagem e de passagens, e que morreu em Auschwitz a 30 de Novembro de 1943. Não morreu a odiar Deus, não morreu sequer a interrogar o seu silêncio. Morreu a escrever (são das últimas palavras do seu diário) “que talvez não haja uma diferença assim tão grande entre estar dentro ou estar fora do Campo”. O que é que isto pode querer dizer é para mim tão misterioso como as palavras de Simone Weil.
Mas, recentemente, contaram-me mais. Dois meses antes, quando os alemães a levaram de Westerbork para Auschwitz – a 7 de Setembro –, conseguiu atirar da janela do comboio um bilhete postal escrito a um amigo.
Quem mo contou, disse-me: “Pensa nos mil acidentes materiais que podiam acontecer àquele rectangulozinho de cartolina sem qualquer valor, abandonado em tempo de guerra, junto a uma linha de caminho-de-ferro. Pensa nos mil acasos necessários para que alguém apanhasse esse postal e o fizesse chegar ao destinatário (um homem muito mais velho, paixão da vida de Hetty, que ela deixara doente e fraco na Holanda natal). Graças a esse gesto, de alguém que nunca se saberá quem foi, é-nos possível ainda hoje ler esse postal, onde, entre algumas palavras de amor, Hetty diz que deixaram cantando o campo de Westerbork.
Foi cantando que morreu em Auschwitz? Quem sabe? Sabe-se é que ela escreveu que “a gente não quer reconhecer que, chegados a um certo ponto, já nada se pode fazer, mas só ser e aceitar”. Onde estava o Senhor para Hetty a 30 de Novembro de 1943 em Auschwitz?
Não conto esta história, como podem pensar, para amenizar esta crónica ou para a angelizar. Muito pelo contrário. Conto-a para que o terrível silêncio e as terríveis palavras nos ensurdeçam e emudeçam na “treva mais que mística do silêncio”. n Escritor

P. S. – Uma boa notícia para o amigo que me contou Etty Hillesum. Na colecção “Teofanias” do Pe. Tolentino de Mendonça (Assírio & Alvim) vai sair, em tradução portuguesa, o diário dela.

O Natal do mafarrico

"Parece que hoje, por ser dia seis do seis do dois mil e seis, há uma série de cristãos e pagãos preocupados com a hipótese da data pertencer ao Diabo. É útil o esclarecimento teológico. Não há exclusivos espirituais sobre o calendário. Todos os dias são do Senhor e do Demónio - o grande exemplo universal de convivência. Aprendamos esta valiosa lição." [Tiago, na Voz do Deserto]

5.6.06

Obrigado

À família, aos amigos novos e velhos, aos jacarandás e aos livros, aos blogues de um dia ou de todas as horas. A quem nos deu os parabéns, ou nem por isso. Este blogue segue dentro de momentos.

Outra história de amor [post para amigos]

Recebo do Rui, a mensagem: "Para se juntar ao João e à Marta, nasceu o... Miguel! Maravilha!"

Uma história de amor [outro contributo]

«Diz-me que o nome dela é Valentina. Mas é mais como Vénus.
- A Vénus de Botticelli a erguer-se das ondas. Cabelo dourado. Olhos encantadores. Seios divinais. Quando a vires vais compreender. [...] Trinta e seis. Tem trinta e seis anos e eu tenho oitenta e quatro e depois?»
Marina Lewycka, Breve História dos Tractores em Ucraniano, Civilização

Uma história de amor [um contributo]

«- Como é que está o teu queixo?
- Já levei estalos piores. Dwight, só quero que saibas que ele pertence ao passado. Antes de tu voltares a aparecer, com essa cara nova, foi só porque eu tive pena dele. E foi só uma vez. Já fiz alguns disparates nesta vida.
- Tendo em conta que eu sou um desses disparates, não te posso criticar, Shellie.»
Frank Miller, Sin City - A Grande Matança, Devir.

4.6.06

Hoje, três anos de Cibertúlia

"let's start a magazine
to hell with literature
we want something redblooded

lousy with pure
reeking with stark
and fearlessly obscene

but really clean
get what I mean
let’s not spoil it
let’s make it serious

something authentic and delirious
you know something genuine like a mark
in a toilet

graced with guts
and gutted with grace"

squeeze your nuts and open your face

- E. E. Cummings, No Thanks (1935)

Ao tapete, duas vezes




Devo andar a matar blogues. Coloco-os ali ao lado classificados como "KO!" e levo-os literalmente ao tapete. É a única explicação para dois dos blogues que ali se alojaram passarem directamente para o «depósito legal». Primeiro, com o Lugar Comum, agora com os dias de uma princesa. Fica o aviso para os que ali (ainda) moram.

[actualizado: falso alarme: os dias de uma princesa seguem o seu caminho.]

3.6.06

[poesia de crianças]

"A minha vida é uma memória"
(João Pedro Vitorino, 3 anos)

"A poesia é uma coisa que não é a mesma coisa mas é igual"
(Beatriz Antunes, 4 anos)

"O coração é uma bolinha pequenina que faz barulho"
(Ana Carolina Gargalo, 3 anos)

"Eu tenho letras
Que andam no meu nome"

(Jorge Nunes, 4 anos)

"O silêncio é um bocadinho de boca"
(Silvana Cravide, 2 anos)

"O amor é o dobro"
(João Cassola, 5 anos)

"Onde foi a luz quando apaga-se?"
(Mariana Dionísio, 2 anos)

"Os adultos, mal ouvem uma coisa que não gostam
ficam logo com a coisa que estava combinada
que já não é"
(Cláudia Inês Guerra, 4 anos)

[poemas citados por Miguel Somsen, no artigo de quinta-feira no jornal Metro, trazidos para a blogosfera pelo amigo Rui, e lidos por mim em voz alta a M., nessa noite. porque o amor é o dobro]

Santos

A primeira sexta-feira de Junho anuncia as noites que aí vêm: bailarico à porta de casa. E os marmelinhos quase de fora foi uma das pérolas que tive de ouvir como som de fundo ao CSI NY.

2.6.06

Caveto

A lei da paridade foi vetada por Cavaco. Há que preservar os partidos de qualquer intromissão feminina. E manter a política como reserva territorial dos homens.

Bloga-se!

Andamos ao contraciclo. Em Agosto fica-se por aqui. Trabalha-se, vive-se a cidade, passeia-se. E bloga-se. Dentro de 15 dias iremos de férias e até lá este blogue ainda fará três anos e terá mais uns quantos posts. Pergunto-me muitas vezes o que faço aqui. E para que escrevo. Mas logo me convenço que vale a pena.

1.6.06

Contabilidades

É o costume. Os feirantes já se queixam dos clientes que não vão, não páram, não compram, não nada. Os livros ficam nas barracas, o dinheiro não entra nas caixas registadoras. Há outras contas que os feirantes não contabilizam: os encontros, os passeios, as cumplicidades, os gelados e as farturas, no fundo, as palavras que dizemos e trocamos. Pode lá haver melhor contabilidade, senhores feirantes?!

Eles

No ginásio, eles discutem onde almoçam:
"- No japonês ou no Go Natural?"
Definitivamente, eles estão assim.

Instituto de Estatística

Quatro carrinhos de bebé, em volta do lago do jardim da Parada. E seis mesas de velhotes a jogar às cartas. Impressões de um dia da Criança.

Equilíbrios

«De um cristão deve esperar-se que se preocupe em atender as necessidades do outro desconhecido que encontra por acaso ou que se encontra a dez mil quilómetros de distância. Mas, esse mesmo cristão que se preocupa com as necessidades dos desconhecidos não deve deixar a sua família morrer à fome...» A leitura exigente do timshel, continua na Terra.