23.7.04

O mestre da guitarra «com gente dentro»

Carlos Paredes, a quem Amália uma vez qualificou como «um monumento nacional, como o Jerónimos», morreu esta sexta-feira, aos 79 anos.

Sobre o guitarrista, Maria João Seixas escreve na apresentação de «Uma Guitarra com Gente Dentro»: «Quando o via tocar, o corpo longo e a cabeça e os braços debruçados em curva matricial sobre a guitarra, donde nasciam os mais desvairados, comoventes e imponderáveis sons, pensei que o útero materno de Carlos Paredes tinha a forma da sua guitarra e era a ele que queria sofridamente regressar, era para ele que as composições jorravam e era nele que encontrava o "pathos" com que dedilhava as cordas. Sublimemente!»

Paredes começou a tocar guitarra aos quatro anos e desde então nunca parou até que em 1993 a doença o afastou do seu instrumento. «Quando eu morrer, morre a guitarra também», disse o músico há alguns anos ao jornal Público.

Em «Canções Para Titi» (2000), fisicamente debilitado e com plena consciência das limitações que isso acarretava ao domínio técnico absoluto que sempre caracterizara a sua relação com a guitarra, o músico não conseguiu terminar o álbum. Mesmo assim, nos temas que gravou, o guitarrista e compositor multiplicou à exaustão os registos de cada obra, repetindo-as sucessiva e totalmente sempre que, numa luta constante com as limitações físicas que a doença lhe impunha, se sentia insatisfeito com a interpretação.

«Ouvir hoje a sucessão completa destes registos é uma experiência emocional tremenda. Sentimo-nos testemunhas directas de um combate feroz e desesperado de um grande criador com o seu próprio corpo», sublinhou o musicólogo Rui Vieira Nery.

«Uma Guitarra com Gente Dentro» e «Canções para Titi» foram, pois, os derradeiros testemunhos de uma obra notável, feita de canções com afectos dentro.

[a partir de um texto próprio, no PD]