11.9.03

9-11

Antes de mais, um último agradecimento... Miguel: eu percebi que o JPH não entendeu o meu texto como uma anedota. Eu estava a brincar... era uma chalaça, percebes? O texto não era uma anedota, mas até parecia...

O José Manuel Fernandes assina hoje um editorial no Público, intitulado "Uma batalha que diz respeito a todos". Entre uma série enorme e diversa de considerações de senso-comum barato, asneiras que lhe ficam mal e parvoí­ces às quais já nos foi habituando, JMF afirma que «continuamos a ter de lutar por um modelo civilizacional assente no respeito pela lei e pelos direitos dos indivíduos e que tem como expressão de governo a democracia liberal».

Isolada, esta frase poderia ser incluí­da no grupo das considerações de senso-comum barato. O problema é que, no contexto em que está inserida, a afirmação passa a ser um misto de asneira (que fica mal ao director do Público) e de parvoíce (à qual já nos foi habituando).

É que quando JMF diz «continuamos», está a incluir neste «nós» os americanos e os ingleses (ou os seus governos, para ser mais exacto). O que é, evidentemente, uma contradição, já que se há coisa que deixou de ser respeitada por estas duas potências, desde há dois anos, foi precisamente a lei e os direitos dos indivíduos.

Se JMF não partilhasse da obsessão messiânica de George W. Bush - que, como diria Leonard Cohen no seu poema "First we take Manhattan", parece sentir-se «guided by a signal in the heaven»... - talvez conseguisse parar um bocadinho e perceber que o mundo - antigo ou moderno - não se desenha a preto e branco. E ficava-lhe bem admitir...

Estou de acordo que é intolerável que «a qualquer momento, em qualquer lugar, cidadãos tranquilos e paí­ficos» possam ser atacados. Mas, pelos vistos, ao contrário de JMF, acho tão grave que os atacantes sejam «fanáticos em nome de um fundamentalismo islamo-fascista» como outra coisa qualquer... mesmo que vistam camuflados, andem de tanque e helicóptero e saibam falar inglês com sotaque do midwest.

JMF defende-se, dizendo que já falou dos prisioneiros de Guantanamo e que não quer falar sobre as armas de destruição maciça que, aos seus olhos, não são questões centrais. Pois...

Bem sei que a técnica de construir uma teoria a partir de apenas alguns elementos (eventualmente "reforçados"), ignorando propositadamente outros, não é uma criação original de JMF. Outros, antes, utilizaram a mesma técnica. Mas o facto de um erro ser cometido muitas vezes, não faz com que deixe de ser um erro. Certo?!

JMF não quer falar das armas de destruição maciça e de outras questões "periféricas" porque são peças difí­ceis de encaixar no seu puzzle preto-e-branco que prova que "o Iraque é o novo campo de batalha" entre o bem o mal.

Seremos todos americanos, mas isso não significa que tenhamos todos de estar de acordo com a poí­tica seguida pelos nossos governantes. George W. Bush não pode, até porque carece de legitimidade democrática para o fazer, decidir sozinho entrar numa batalha e, depois de lá estar, gritar por ajuda, dizendo-nos que a batalha diz respeito a todos.

Não, JMF, as batalhas que me dizem respeito sou eu que decido quais são. Não é o Presidente dos EUA, nem o director do Público.

No dia 11 de Setembro de 2001, quando os atentados bárbaros que atingiram NY e Washington tiveram lugar, eu estava a viajar para Istambul. Foi num hotel dessa cidade-ponte que vi as imagens do impacto dos aviões, do colapso das torres gémeas do WTC, do caos, do pânico e da estupefacção.

Trazia nesse dia comigo um caderno que, na capa, tinha a seguinte inscrição: «welcome to the wild world». O caderno estava cheio de folhas brancas e eu decidi começar a preenchê-las. No momento em que peguei na caneta, ouvi, um pouco por toda a cidade, os cânticos que chamavam os fiéis à oração. Não mais parei de escrever...

Percebi, nesse momento, que eu também tinha uma batalha a travar porque não queria que os meus filhos viessem a viver nesse "wild world". O campo dessa minha batalha passa pelo Afeganistão e pelo Iraque, mas passa também por Londres e por Washington, por Madrid e por Lisboa. Abraça todo o mundo, porque os meus inimigos estão em todo o lado.

A estupidez e a intolerância, a incompreensão e a soberba, o racismo e a arrogância. Os meus inimigos são perigosos e poderosos e têm ramificações por todo o lado. Estão nas montanhas do Afeganistão e no Pentágono, no deserto iraquiano e em Downing Street, na Casa Branca e na Rua Viriato.

Aqueles a quem JMF se refere quando diz "os Estados Unidos e o Reino Unido", escolheram o seu caminho e a sua batalha. Tal como a Al-Qaeda escolheu o seu caminho e a sua batalha. Mas esses não são os meus caminhos nem as minhas batalhas e, por isso, a batalha deles não diz respeito a todos.

O diálogo intercultural (cá estou eu a meter a minha colherada!) não é coisa fácil. É um caminho pedregoso e uma batalha longa e difí­cil. Mas tem uma grande vantagem, JMF: nesta batalha não há "nós ou eles"; na minha batalha é "nós e eles"!

Um dia destes vou ser pai e, daqui a alguns anos, vou entregar um caderno ao meu filho. Na capa vai continuar a inscrição «welcome to the wild world», mas as folhas vão estar cheias de palavras escritas à mão. Espero que, depois de as ler, o meu filho perceba que o mundo só continuará selvagem se nós não estivermos dispostos a participar no esforço de construção da Paz.

E esse esforço, JMF, não se faz com exércitos e milhões de dólares em bombas e mí­sseis. Faz-se, antes de mais nada, continuando a lutar por um modelo civilizacional assente no respeito pela lei (igual para todos) e pelos direitos dos indivíduos (e das culturas) e que tem como expressão de governo a democracia liberal (legitimada pelo povo em vez de imposta pela força de uma potência estrangeira).