24.10.03

Da morte (uma semana depois)

«Que tipo terá escolhido no momento da morte? Gostarias de te transportar até essa masmorra como uma Verónica e de lhe passar a toalha sobre o rosto, para gravares o rictus sincero do que vai morrer. É sincero esse rictus? Por acaso a cultura educou-nos por forma a escolhermos o rictus da morte, inclusive a última frase? Qual seria o grito de um ser humano sem cultura, perante a presença da morte? Um alarido, que é a linguagem mais sincera, o alarido ou, na sua falta, a tristeza biológica do resignado que abre as portas do corpo à morte a partir da melancolia paralisante, com os olhos interiores fechados perante o inevitável. A água da piscina contém-te as lágrimas, mergulhas como se renunciasses à realidade do dia e da terra e quando emerges ficou nas águas a tua angústia, como uma sujidade viscosa da alma e espera-te a verticalidade de um empregado que descobriu o ponto exacto da tua emersão.»

Manuel Vázquez Montalbán, Galíndez, ed. Caminho (1994).