O mundo ralha de tudo – crónica de uma viagem de "chapa" na EN1*
O quiosque está fechado. Esconde o que vende e não revela ao viajante apressado qualquer pista do que ali se encontra. As outras esquinas – assim se chamam as pequenas casas de venda que se arrumam na berma da estrada –, anunciam invariavelmente Coca-Cola, «páre! beba! curte!» [sic]. Só os tempos verbais permitem a pluralidade publicitária: «O alimento que fortifica», Milo, ou a pasta Colgate não são concorrentes do refrigerante. Esta esquina anuncia-se, sem dizer o que vende: O Mundo Ralha de Tudo. Nem o nome do proprietário, para indagação. Estamos em Maphinhane, província de Inhambane, na Estrada Nacional 1 (EN1), que une Maputo e Beira, numa sucessão de picadas, terra batida, crateras, lama, desvios de obras e episódios de asfalto.
Já levamos mais de 400 quilómetros desde a saída de Maputo, traduzidas em horas e horas de estrada. O "chapa" não dá mostras de se atrapalhar. As estradas moçambicanas morriam sem as carrinhas invariavelmente japonesas (e muitas nem escondem os caracteres orientais das empresas que serviram antes) que, nas ruas da capital, ou de vila em vila, de cidade em cidade, transportam pessoas, malas, animais, móveis, num amontoado de tralha e calor, mesmo quando o Inverno mais se sente. Com os "chapas", cruzam-se "machibombos", autocarros que circulam também eles num equilíbrio desengonçado de objectos e milagre da mecânica.
Da estrada, descobrem-se lugares que o mapa não conhece. Vêem-se palhotas, pequenas casas circulares, triangulares, quadradas, feitas de caniço e telhados de capim. Vidas suspensas da paragem dos carros. Se um veículo se detém na berma, por algum motivo, logo alguém surge de lugar nenhum. Para vender. Castanhas de caju, bananas, laranjas, carvão, abóboras, arcos e flechas e máscaras, "pré-pago o celular", tubos de escape, corpos. "Salão de corte". E a Escola Primária Completa. Há mulheres que carregam fardos e crianças, lenha e comida, num vaivém incessante. Jovens muito negras, bonitas, sempre muito negras. E miúdos, da escola para o campo, da palhota para a estrada. Também eles carregam, o irmão mais pequeno ou o bidão que a mãe não consegue transportar. São mais mulheres e crianças que se vêem a caminhar na estrada.
É Inverno, o sol queima. Há queimadas no horizonte. O Ministério da Saúde moçambicano afirmava em Setembro de 2005 que a taxa de infecção por VIH no adulto, no país, tinha aumentado de 14 por cento em 2002 para 16,2 por cento em 2004, valores calculados a partir de dados recolhidos por todo o país durante o ano de 2004. A prevalência do VIH dos 15 aos 49 anos saltou para 19,9 por cento face aos 13,6 por cento de 2002 e era muito superior nos centros urbanos. Os números frios escondem outros: a diminuição da esperança de vida, a morte de adultos que deixam filhos ao abandono ou entregues a avós sem rendimentos suficientes.
Na EN1, a campanha aposta na colisão frontal: «Onde está o motorista? Chocou com o sida.» Também junto dos miúdos se faz campanha: há uma «Escola livre do sida». Ao lado, o combate contra a malária. «Deixe a malária fora da rede.» Esta doença continua a ser a principal responsável pela mortalidade infantil em Moçambique. Segundo a Unicef, é responsável por cerca de 35 por cento das mortes entre os menores de cinco anos de idade. Morrem por dia 125 crianças por causa da doença. Os alunos vão à escola com sacolas da Unicef: «Aprender para melhor crescer.»
Quase tão endémica como a doença é a corrupção. A pequena propina para resolver o problema. Depois de sair da província de Maputo, em direcção ao Norte, o polícia de Gaza manda encostar a viatura. Impecável na sua farda branca, pede papéis, implica com o facto do veículo de Maputo estar em Gaza a fazer serviço de transporte. Depois desaparece com o motorista do "chapa". «Quis chatear?» «Não, quis dinheiro.» Seguimos viagem. Muitos quilómetros e outras operações stop depois (sem mais problemas), atalha-se caminho e metemo-nos em trabalhos. Os trabalhadores que alisam a terra batida do troço em obras entravam a marcha com uma máquina. Nada que 20 mil meticais (pouco mais de 60 cêntimos) despachados pelo motorista não resolvam. No regresso a Maputo, quando ultrapassamos um carro da polícia, eles não gostam – ou então esfregam as mãos. Nova discussão com o motorista: embirram com os papéis do atrelado. Temos direito a escolta até ao hotel. «Desta vez não levaram nenhum.»
Já levamos mais de 400 quilómetros desde a saída de Maputo, traduzidas em horas e horas de estrada. O "chapa" não dá mostras de se atrapalhar. As estradas moçambicanas morriam sem as carrinhas invariavelmente japonesas (e muitas nem escondem os caracteres orientais das empresas que serviram antes) que, nas ruas da capital, ou de vila em vila, de cidade em cidade, transportam pessoas, malas, animais, móveis, num amontoado de tralha e calor, mesmo quando o Inverno mais se sente. Com os "chapas", cruzam-se "machibombos", autocarros que circulam também eles num equilíbrio desengonçado de objectos e milagre da mecânica.
Da estrada, descobrem-se lugares que o mapa não conhece. Vêem-se palhotas, pequenas casas circulares, triangulares, quadradas, feitas de caniço e telhados de capim. Vidas suspensas da paragem dos carros. Se um veículo se detém na berma, por algum motivo, logo alguém surge de lugar nenhum. Para vender. Castanhas de caju, bananas, laranjas, carvão, abóboras, arcos e flechas e máscaras, "pré-pago o celular", tubos de escape, corpos. "Salão de corte". E a Escola Primária Completa. Há mulheres que carregam fardos e crianças, lenha e comida, num vaivém incessante. Jovens muito negras, bonitas, sempre muito negras. E miúdos, da escola para o campo, da palhota para a estrada. Também eles carregam, o irmão mais pequeno ou o bidão que a mãe não consegue transportar. São mais mulheres e crianças que se vêem a caminhar na estrada.
É Inverno, o sol queima. Há queimadas no horizonte. O Ministério da Saúde moçambicano afirmava em Setembro de 2005 que a taxa de infecção por VIH no adulto, no país, tinha aumentado de 14 por cento em 2002 para 16,2 por cento em 2004, valores calculados a partir de dados recolhidos por todo o país durante o ano de 2004. A prevalência do VIH dos 15 aos 49 anos saltou para 19,9 por cento face aos 13,6 por cento de 2002 e era muito superior nos centros urbanos. Os números frios escondem outros: a diminuição da esperança de vida, a morte de adultos que deixam filhos ao abandono ou entregues a avós sem rendimentos suficientes.
Na EN1, a campanha aposta na colisão frontal: «Onde está o motorista? Chocou com o sida.» Também junto dos miúdos se faz campanha: há uma «Escola livre do sida». Ao lado, o combate contra a malária. «Deixe a malária fora da rede.» Esta doença continua a ser a principal responsável pela mortalidade infantil em Moçambique. Segundo a Unicef, é responsável por cerca de 35 por cento das mortes entre os menores de cinco anos de idade. Morrem por dia 125 crianças por causa da doença. Os alunos vão à escola com sacolas da Unicef: «Aprender para melhor crescer.»
Quase tão endémica como a doença é a corrupção. A pequena propina para resolver o problema. Depois de sair da província de Maputo, em direcção ao Norte, o polícia de Gaza manda encostar a viatura. Impecável na sua farda branca, pede papéis, implica com o facto do veículo de Maputo estar em Gaza a fazer serviço de transporte. Depois desaparece com o motorista do "chapa". «Quis chatear?» «Não, quis dinheiro.» Seguimos viagem. Muitos quilómetros e outras operações stop depois (sem mais problemas), atalha-se caminho e metemo-nos em trabalhos. Os trabalhadores que alisam a terra batida do troço em obras entravam a marcha com uma máquina. Nada que 20 mil meticais (pouco mais de 60 cêntimos) despachados pelo motorista não resolvam. No regresso a Maputo, quando ultrapassamos um carro da polícia, eles não gostam – ou então esfregam as mãos. Nova discussão com o motorista: embirram com os papéis do atrelado. Temos direito a escolta até ao hotel. «Desta vez não levaram nenhum.»
A EN1, a partir do Xai-Xai é um slalom gigante. O "chapa" que passa, pede: «Liga mais tarde.» Outro, de matrícula sul-africana, desconfia. «Trust nobody.» Parece adivinhar: os acidentes na estrada são violentos. «Como conduz ele?», pergunta-se nas traseiras do autocarro. Mais valia perguntar como se aguenta o "machibombo". Cá como lá: as antenas de telemóveis, a rasgar o horizonte. Para Norte, acabam-se as campanhas contra «o sida», só fica a Coca-Cola. A vegetação tropicaliza-se. O pôr-de-sol é único.
Junto à estrada um «memorial às vítimas comuns da guerra dos 16 anos». Adérito, 32 anos, nove filhos, que estão «aqui e ali», no Maputo, em Inhambane, motorista, profissão inscrita no passaporte, também combateu – foi chamado pela Frelimo com 16 anos, para cumprir dois. Não fala mais disso. Os olhos denunciam tempos duros. «É. Foi duro.» Prefere olhar para a estrada.
Há mesquitas e madrassas. E um autocarro que parou para que os passageiros, todos homens, possam orar em direcção a Meca. Há igrejas evangélicas, assembleias de Deus, pentecostais, metodistas, testemunhas de Jeová, Reino de Deus. Todos se anunciam, em placas mais ou menos artesanais. Os católicos vêem-se menos, ou anunciam-se pouco. Algumas missões e ordens religiosas, pouco mais. A presença portuguesa também é discreta. Marcas de anos de guerra, de raiva, de descuido, de degradação, entranham-se nas paredes das casas de tijolo e cimento. Algumas poucas são hoje lojas, muitas apenas escombros. Todas guardam fantasmas. A noite cai cedo, às seis da tarde está como breu. Os rostos e corpos que passam são pardos, seguem caminho. Os carros que se aventuram assinalam o cruzamento com outros fazendo pisca. Assim se vê onde vai passar o veículo, explica o motorista.
Mais para Norte, a estrada piora. Buracos. O difícil é acertar no alcatrão. O estado das estradas imprevisível. Depois de Massinga, a chuva é inimiga da estrada de terra batida. A chuva é abençoada, replicam os locais. As cheias de 2000 afectaram a EN1. O Governo aproveitou e lançou uma grande empreitada de reconstrução da principal via de Moçambique. "Venha ver de perto", diz o nome do quiosque. Não é preciso. À velocidade a que se segue – a carrinha não passa dos 20, 30 km/h – é impossível não ver o que se passa, o que se vende. Há outras lojinhas. "Esquina legal", "Esquina Fala Verdade". Há desvios que nos levam para picadas, enquanto que, ao lado, a estrada a ser construída parece rir-se. Ali, sem se usar. «Paraíso do camionista. Casa de Repouso.» Quase que apetece.
Leio "A Baía dos Tigres", África entranhada no corpo e mente de Pedro Rosa Mendes, que viajou da costa à contracosta. Há pormenores que revisito à boleia do "chapa": a mulher que se alivia nas ruas de Maxixe, como o rapaz à noite que abre a porta do jipe, com a luz dos faróis de quem segue atrás.
Chegamos a Vilanculos, 500 quilómetros a Norte de Maputo. Bazaruto ao largo, sol e chuva. A chuva esconde o paraíso, o sol revela-o – uma fina língua de areia que separa o azul do céu do índico azul. Ben é marinheiro. Não é diminutivo de Benjamim, nem de nada. É Ben. Diz que «está melhor , muito melhor». «Já não tem guerra.» A vida está cara, mais cara («os "boers" vêm para aí com dólares e rands»), «mas já não há guerra». Durou 16 anos. E mais dez. E mais.
Afonso não conheceu a guerra. Tem 13 anos, 12 irmãos. É de Bangai. Vende lenços e espanta-espíritos na praia deserta. Espeta dois paus na areia, os lenços agarrados apelam mais à compaixão que ao consumo. Seja. A escola não é hoje. O professor morreu. «One hundred», 100 contos, três euros, pelo lenço. Por tudo, tudo custa 100 contos. A cabeça dele mostra a doença – tinha. O doutor Cabral, «está lá», e aponta para lugar indefinido, "lá" ainda não recebeu a visita de Afonso.
O mundo ralha de tudo. Os turistas amaldiçoam o vento e a chuva, pedem bom tempo. «Tem de pedir a Deus», responde-lhes Ben. O deus de Ben, qualquer que ele seja, é o deus das chuvas. «A chuva é uma bênção, senhores.» Mesmo quando irrompe violenta e faz os rios galgar campos, estradas e vidas. O pequeno pedaço de terra é uma amostra de um provável paraíso. Afonso desconhece-o. Não ralha de nada.
Junto à estrada um «memorial às vítimas comuns da guerra dos 16 anos». Adérito, 32 anos, nove filhos, que estão «aqui e ali», no Maputo, em Inhambane, motorista, profissão inscrita no passaporte, também combateu – foi chamado pela Frelimo com 16 anos, para cumprir dois. Não fala mais disso. Os olhos denunciam tempos duros. «É. Foi duro.» Prefere olhar para a estrada.
Há mesquitas e madrassas. E um autocarro que parou para que os passageiros, todos homens, possam orar em direcção a Meca. Há igrejas evangélicas, assembleias de Deus, pentecostais, metodistas, testemunhas de Jeová, Reino de Deus. Todos se anunciam, em placas mais ou menos artesanais. Os católicos vêem-se menos, ou anunciam-se pouco. Algumas missões e ordens religiosas, pouco mais. A presença portuguesa também é discreta. Marcas de anos de guerra, de raiva, de descuido, de degradação, entranham-se nas paredes das casas de tijolo e cimento. Algumas poucas são hoje lojas, muitas apenas escombros. Todas guardam fantasmas. A noite cai cedo, às seis da tarde está como breu. Os rostos e corpos que passam são pardos, seguem caminho. Os carros que se aventuram assinalam o cruzamento com outros fazendo pisca. Assim se vê onde vai passar o veículo, explica o motorista.
Mais para Norte, a estrada piora. Buracos. O difícil é acertar no alcatrão. O estado das estradas imprevisível. Depois de Massinga, a chuva é inimiga da estrada de terra batida. A chuva é abençoada, replicam os locais. As cheias de 2000 afectaram a EN1. O Governo aproveitou e lançou uma grande empreitada de reconstrução da principal via de Moçambique. "Venha ver de perto", diz o nome do quiosque. Não é preciso. À velocidade a que se segue – a carrinha não passa dos 20, 30 km/h – é impossível não ver o que se passa, o que se vende. Há outras lojinhas. "Esquina legal", "Esquina Fala Verdade". Há desvios que nos levam para picadas, enquanto que, ao lado, a estrada a ser construída parece rir-se. Ali, sem se usar. «Paraíso do camionista. Casa de Repouso.» Quase que apetece.
Leio "A Baía dos Tigres", África entranhada no corpo e mente de Pedro Rosa Mendes, que viajou da costa à contracosta. Há pormenores que revisito à boleia do "chapa": a mulher que se alivia nas ruas de Maxixe, como o rapaz à noite que abre a porta do jipe, com a luz dos faróis de quem segue atrás.
Chegamos a Vilanculos, 500 quilómetros a Norte de Maputo. Bazaruto ao largo, sol e chuva. A chuva esconde o paraíso, o sol revela-o – uma fina língua de areia que separa o azul do céu do índico azul. Ben é marinheiro. Não é diminutivo de Benjamim, nem de nada. É Ben. Diz que «está melhor , muito melhor». «Já não tem guerra.» A vida está cara, mais cara («os "boers" vêm para aí com dólares e rands»), «mas já não há guerra». Durou 16 anos. E mais dez. E mais.
Afonso não conheceu a guerra. Tem 13 anos, 12 irmãos. É de Bangai. Vende lenços e espanta-espíritos na praia deserta. Espeta dois paus na areia, os lenços agarrados apelam mais à compaixão que ao consumo. Seja. A escola não é hoje. O professor morreu. «One hundred», 100 contos, três euros, pelo lenço. Por tudo, tudo custa 100 contos. A cabeça dele mostra a doença – tinha. O doutor Cabral, «está lá», e aponta para lugar indefinido, "lá" ainda não recebeu a visita de Afonso.
O mundo ralha de tudo. Os turistas amaldiçoam o vento e a chuva, pedem bom tempo. «Tem de pedir a Deus», responde-lhes Ben. O deus de Ben, qualquer que ele seja, é o deus das chuvas. «A chuva é uma bênção, senhores.» Mesmo quando irrompe violenta e faz os rios galgar campos, estradas e vidas. O pequeno pedaço de terra é uma amostra de um provável paraíso. Afonso desconhece-o. Não ralha de nada.
* - notas de uma viagem a Moçambique de 16 de Junho a 1 de Julho, na companhia de 12 fantásticos amigos e de M., a estrela que veio do céu, coligidas em crónica dada à estampa em Julho. Fotos desta viagem na Estrada Nacional 1.