23.3.05

Últimas Ceias que nos provocam



A arte tem destas coisas. Uma representação em palco, uma imagem fotográfica, um sktech humorístico, o movimento de um filme, a luminosidade de um quadro ou (suprema blasfémia?) o mediatismo de uma campanha publicitária podem provocar-nos – a arte deve sempre provocar, creio. Os gostos discutem-se, não se impõem. E, no caso da representação da Última Ceia, que se mostra neste "link", há ali motivos para uma reflexão, como aliás instigou o nosso amigo Lutz. Como houve com Caravaggio, quando pintou – com escândalo – uma Nossa Senhora com o corpo e rosto de uma prostituta. Abençoada mulher!

A Igreja oficial não reagiu bem. Como agora em Itália e França, em relação à campanha de Marithé e François Girbaud. Como já não tinha reagido bem a "Je vous salue, Marie" ou à "Última Tentação de Cristo" e, pior ainda, à representação humorística de "A Última Ceia" e da "Rainha Santa Isabel", por Herman José. Ou agora com o "Código Da Vinci" a merecer reparos públicos do Vaticano, como se de um ensaio se tratasse. Valerá a pena? Acho que não – valeria a pena, suscitando a discussão sobre a Arte, promovendo a reflexão da Beleza, não “batendo-por-bater”. Porque, por oposição, a Igreja nunca critica a fealdade das novas igrejas, não censura coros que assassinam a liturgia e fazem corar Gregório, não critica uma oratória sem rasgo nem chama.

Bettina Rheims crucificou uma mulher [imagem em cima]. Agora a campanha da M+FG feminiliza a ceia – apóstolas e a filha de Deus. No fundo, Deus e o seu filho são humanizados – homem e mulher. E assim o encontro da história faz-se no reconhecimento de uma cena familiar.

Na Páscoa, são mulheres que já não encontram o corpo do Ressuscitado – as primeiras testemunhas da libertação. A Arte traz a mulher para o centro, para nos recordar que a Criação não se fez apenas à imagem e semelhança do homem. De uma vez por todas, resgate-se Eva do purgatório. E aceite-se os caravaggios de hoje, mesmo se não gostamos. Talvez ali se descubram novos caminhos de entender Deus – e de viver a Sua Páscoa.


[publicado hoje na Terra da Alegria]