[nota prévia:
agora que se reacendem velhos debates recupero textos antigos meus para dizer ao que venho... hoje, sobre a Turquia, antes que o Papa lá vá.]
Os mapas enganam: a velha Europa rejuvenesce por estes dias. De Talin a Lisboa, o sonho desenhado por gestos e palavras de João Paulo II e (depois) Mikhail Gorbatchov, é uma realidade única – mas diversa.
Os quadros enganam: esta nova Europa toma ares de velha, quando olhamos os números de frias maiorias. Entre a quase unanimidade de Malta (98 por cento de católicos romanos) ou da Polónia de Karol Wojtila (95 por cento) e a “estranha” paridade checa entre ateus (39,8) e católicos romanos (39,2, mais 7,6 por cento de outras denominações cristãs), há uma pertença prática ou apenas estatística que permanece de matriz judaico-cristã: 60,3 por cento de católicos (mais 12,5 por cento de outros cristãos) na Eslováquia; 70,8 por cento também de católicos na Eslovénia; 78 por cento de luteranos (mais 19 por cento de ortodoxos) na Estónia; 67,5 por cento de católicos (e 25 por cento de calvinistas e luteranos) na Hungria; 79 por cento de católicos romanos na Lituânia, e números não determinados na Letónia mas que apontarão para uma maioria clara de crentes cristãos.
Quase fora deste mapa, a República do Chipre tem 78 por cento de cristãos gregos ortodoxos e 18 por cento de muçulmanos. A ilha dividida do Mediterrâneo pode ser a última fronteira, mas o muro permanece por derrubar. A escassos 75 quilómetros da costa cipriota, está outro “obstáculo” a uma Europa ainda mais rica na sua diversidade: a Turquia.
Que podem significar estes jogos geoestratégicos ou de soma das partes “religiosas” [...]? Tudo: no diálogo interconfessional reside o maior desafio das igrejas. Aos profetas do Mal que proclamam este novo século como o do terror, a resposta tem de ser outra. Necessariamente, a do diálogo, das pontes que se fazem, dos muros que se derrubam.
Daí o regresso à Turquia. A porta do Oriente e do diálogo com o mundo muçulmano deve ser um desejado parceiro europeu, de pleno direito na União Europeia. Não escondo algum incómodo naquela democracia musculada, com uma tutela abusiva dos militares e constantes atropelos de direitos humanos básicos. Mas – por acreditar que «todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos» (João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis) – julgo que uma Turquia na União Europeia poderá ser uma forte machadada no fundamentalismo islâmico e na defesa da laicidade no mundo muçulmano. E representará um passo seguro para democratizar o país (como foi, a outra escala, com a Grécia, Portugal e Espanha).
Aqui é que a velha Europa torce as ideias: são de uma direita dita cristã os principais críticos e opositores à integração da Turquia na UE. Por temores otomanos, aqui d’el Rei, que se defenda o Papa e a cristandade. O absurdo deste medo inscreve-se na defesa de uma Europa com vocação de «clube cristão», na expressão de Helmut Kohl. Só que a vocação universal do cristianismo é a da inclusão, não da exclusão. Uma Turquia “europeia” não pode nunca significar uma tentativa (tentação) de a cristianizar, para pertencer ao clube. A única “cruzada” (chamemos-lhe assim, para alguns perceberem) admissível é outra – a da democracia, dos direitos humanos, da laicidade, da liberdade. E isto conquista-se pelo respeito da diferença, por uma Turquia muçulmana a romper os muros de abençoados clubes cristãos.
Dados estatísticos: in Atlas da Nova Europa, revista Visão, 29 de Abril de 2004.