5.2.07

O lugar da consciência

Podia começar com a citação de Joseph Ratzinger, que postei aqui ontem, quando jovem figura pós-Concílio Vaticano II a dizer o óbvio: «Acima do papa, como expressão da autoridade eclesial, existe ainda a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e, no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja.» Longe de se imaginar na cadeira de Pedro, o hoje Papa Bento XVI disse - pouco antes de ser publicada a encíclica Humanae Vitae (1968) - aquilo que importa em questões que não são dogma de fé: o primado da consciência de mulheres e homens.

É isso que está em causa, neste referendo sobre a despenalização do aborto: o voto de cada um, e neste caso de cristãos e católicos em particular, deve ser ditado pela consciência de cada mulher e homem. O seu voto neste referendo não emana de qualquer regra absoluta ditada por Roma ou ameaçado por padres apocalípticos de Castelo de Vide.

É na racionalidade que radica a responsabilidade pelos actos das mulheres e homens deste país, neste mundo, e pela sua história. É ainda na exigência da racionalidade que se funda a abertura a um mundo ético. Graças a essa exigência, as mulheres e os homens tomam verdadeira consciência dos seus limites e podem então tornar-se responsáveis em relação ao Outro. As mulheres e os homens responsáveis podem aspirar à liberdade. Um projecto de liberdade assume e integra o erro e a falibilidade do agir humano. Só reconhecendo a valor do risco que esta busca comporta é possível às mulheres e aos homens construírem uma vida com um sentido ético e, portanto, plenamente humana.

O parágrafo anterior adaptei-o de um texto de 1992 de um grupo de católicos estudantes, não interessa agora sobre quê. Interessa para sublinhar, como o jovem Ratzinger fez, o óbvio: é na liberdade de voto que se traduz um projecto de liberdade exigente, sério. Por isso, votar Sim, no próximo dia 11, à despenalização da mulher em caso de aborto, não é ser favorável ao aborto, não é querer o aborto liberalizado, é procurar em consciência resolver um problema que dia após dia se coloca dolorosamente, sem leviandade, às mulheres.

Podia a acabar invocar Santo Agostinho que, no seu tempo, escreveu: «A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos» [referido por Jane Hurst, "A História das ideias sobre o aborto na Igreja Católica", Publicações CDD, São Paulo, 1999]. Mas serve-me de pouco este debate, não é isto que se votará a 11 de Fevereiro. O que quero acabar com o meu voto é a penalização criminal da mulher. E para isso prefiro chamar São Tomás de Aquino, que nos lembrou que (citado ontem por frei Bento Domingues, no Público) só somos verdadeiramente livres quando evitamos o mal, porque é mal, e fazemos o bem, porque é bem, não porque está proibido ou mandado.

[Publicado originalmente no Sim no Referendo]