Hoje, no Público, é dado à estampa este artigo de reflexão de António Marujo. Para ler para lá das verdades reveladas.
Alçapões da doutrina oficial católica na questão do aborto
A doutrina oficial católica e de alguns sectores da Igreja em matéria de aborto tem vários alçapões, antes de tocar o problema maior. Essa foi uma razão para a derrota do "não" no referendo.
1. A recusa da educação sexual nas escolas, com medo dos "valores" que se perdem, da "ameaça" à família, da "redução" à biologia. O resultado desta atitude é que nem (muit)as famílias estão preparadas para educar os filhos nesta matéria nem a escola faz o que poderia fazer. Certo: há também falta de maturidade em muitos professores, predomina em Portugal uma visão estatizante da educação e o sistema de ensino não pode fazer tudo. No seu quarto texto sobre o referendo, o cardeal-patriarca de Lisboa escreveu que a educação sexual "é bem-vinda e necessária". Mas essa não é a ideia de muitos responsáveis católicos. E melhor seria que, em vez da guerrilha, se instalasse um clima de colaboração entre o Ministério da Educação, as escolas, os pais, as comunidades religiosas...
2. A recusa da contracepção e do planeamento familiar. É conhecido que a encíclica que regula esta posição oficial da Igreja, a Humanae Vitae (1968), foi publicada pelo Papa Paulo VI sob forte pressão da Cúria Romana contra a opinião de outros sectores da católicos, incluindo casais. O resultado está à vista: a aceitação exclusiva dos métodos "naturais" de planeamento familiar e a recusa do preservativo ou da pílula são um dos motivos mais fortes para que muitos católicos se afastem da Igreja. Hoje, não faz sentido continuar a investir contra esses moinhos de vento, questão de pormenor no tema mais vasto e esse sim fundamental que é o modo de viver a relação com o outro, a sexualidade e a felicidade. O planeamento familiar não é um problema do método que se utiliza, mas uma questão de como se educa para a maternidade e a paternidade responsáveis. Na prática, aliás, sabe-se que muitos católicos não ligam ao que a doutrina diz nesta matéria e que muitos agentes da Igreja - padres, bispos, mesmo cardeais - não lhe dão em privado a importância que afirmam em público.
3. No aborto, há dramas sérios que as pessoas vivem, situações que só cada um, perante a sua consciência (perante Deus, para os crentes), pode avaliar. Em 1994, o Papa João Paulo II beatificou a italiana Gianna Beretta Molla que, em 1962, decidiu levar até ao fim uma gravidez de risco, sabendo que podia morrer e deixar viúvo o marido (que a apoiou) e órfãos os outros três filhos que já tinha. Uma decisão difícil e legítima. Uma mulher que decidisse abortar para não morrer e poder, assim, acompanhar marido e filhos, não deveria merecer o mesmo respeito da parte de quem anuncia, como se diz, o evangelho da misericórdia? (Para o padre João Seabra, como disse na RTP2, a questão mais importante é insistir no "pecado mortal". Ideias infelizes como esta é que continuam a afastar as pessoas do centro da mensagem cristã.)
Outros dramas sérios podem atravessar-se à consciência de cada mulher e de cada homem na questão do aborto. Mas enquanto não se entender que cada pessoa deve ter a consciência ("santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus", como diz o Concílio Vaticano II) no centro da decisão, a Igreja continuará a lutar sempre contra o mal menor, a reboque de leis e dos costumes.
4. O discurso católico poderia ter sido o da compreensão perante o drama do aborto (por exemplo, para com os casos previstos na lei em vigor desde 1984). Poderia, mesmo, ter sido o de exigir que a lei fosse cumprida de forma a evitar o recurso ao aborto clandestino - esse, um mal maior. Mas ele foi sempre o de se opor ao que viria a seguir. Por tudo isto, o discurso oficial católico perdeu - o oficial, porque na acção prática as coisas são (felizmente) diferentes em muitos casos.
5. A mesma preocupação com o início da vida deveria existir para a vida em processo. É que ela só é digna com possibilidade de cada um se poder realizar, com comida, casa e trabalho acessíveis a todos. É bom ver a Associação dos Empresários Católicos pronunciar-se "a favor da vida", como o fez no fim da campanha. Seria bom ver alguns dos nomes dessa associação recordarem-se desse compromisso na hora de fazer pressões para que as mulheres não engravidem, de decidir ordenados ou despedimentos.
Num âmbito diferente, dois aspectos merecem reflexão: a) outra razão que ajudou ao insucesso do "não" foi o silêncio mediático sobre o trabalho feito pelas associações criadas depois do referendo de 1998 e que têm uma acção meritória de apoio a grávidas, a mães adolescentes e a crianças. Muitos católicos estão empenhados nessas associações, várias delas nascidas à sombra de instituições da Igreja, mas isso é pouco divulgado e conhecido; b) Em 1984, quando a primeira lei sobre o aborto foi aprovada no Parlamento, o objectivo era o de acabar com o aborto clandestino. Oxalá que o país seja capaz, agora, de resolver o problema. Para que, daqui a mais 10 anos, não se esteja a votar num novo referendo.
P.S. - Será lamentável se o PS não legislar para haver uma consulta de aconselhamento e apoio às grávidas; não foi isso que destacados membros do partido andaram a prometer e o próprio primeiro-ministro garantiu na noite de domingo?
1. A recusa da educação sexual nas escolas, com medo dos "valores" que se perdem, da "ameaça" à família, da "redução" à biologia. O resultado desta atitude é que nem (muit)as famílias estão preparadas para educar os filhos nesta matéria nem a escola faz o que poderia fazer. Certo: há também falta de maturidade em muitos professores, predomina em Portugal uma visão estatizante da educação e o sistema de ensino não pode fazer tudo. No seu quarto texto sobre o referendo, o cardeal-patriarca de Lisboa escreveu que a educação sexual "é bem-vinda e necessária". Mas essa não é a ideia de muitos responsáveis católicos. E melhor seria que, em vez da guerrilha, se instalasse um clima de colaboração entre o Ministério da Educação, as escolas, os pais, as comunidades religiosas...
2. A recusa da contracepção e do planeamento familiar. É conhecido que a encíclica que regula esta posição oficial da Igreja, a Humanae Vitae (1968), foi publicada pelo Papa Paulo VI sob forte pressão da Cúria Romana contra a opinião de outros sectores da católicos, incluindo casais. O resultado está à vista: a aceitação exclusiva dos métodos "naturais" de planeamento familiar e a recusa do preservativo ou da pílula são um dos motivos mais fortes para que muitos católicos se afastem da Igreja. Hoje, não faz sentido continuar a investir contra esses moinhos de vento, questão de pormenor no tema mais vasto e esse sim fundamental que é o modo de viver a relação com o outro, a sexualidade e a felicidade. O planeamento familiar não é um problema do método que se utiliza, mas uma questão de como se educa para a maternidade e a paternidade responsáveis. Na prática, aliás, sabe-se que muitos católicos não ligam ao que a doutrina diz nesta matéria e que muitos agentes da Igreja - padres, bispos, mesmo cardeais - não lhe dão em privado a importância que afirmam em público.
3. No aborto, há dramas sérios que as pessoas vivem, situações que só cada um, perante a sua consciência (perante Deus, para os crentes), pode avaliar. Em 1994, o Papa João Paulo II beatificou a italiana Gianna Beretta Molla que, em 1962, decidiu levar até ao fim uma gravidez de risco, sabendo que podia morrer e deixar viúvo o marido (que a apoiou) e órfãos os outros três filhos que já tinha. Uma decisão difícil e legítima. Uma mulher que decidisse abortar para não morrer e poder, assim, acompanhar marido e filhos, não deveria merecer o mesmo respeito da parte de quem anuncia, como se diz, o evangelho da misericórdia? (Para o padre João Seabra, como disse na RTP2, a questão mais importante é insistir no "pecado mortal". Ideias infelizes como esta é que continuam a afastar as pessoas do centro da mensagem cristã.)
Outros dramas sérios podem atravessar-se à consciência de cada mulher e de cada homem na questão do aborto. Mas enquanto não se entender que cada pessoa deve ter a consciência ("santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus", como diz o Concílio Vaticano II) no centro da decisão, a Igreja continuará a lutar sempre contra o mal menor, a reboque de leis e dos costumes.
4. O discurso católico poderia ter sido o da compreensão perante o drama do aborto (por exemplo, para com os casos previstos na lei em vigor desde 1984). Poderia, mesmo, ter sido o de exigir que a lei fosse cumprida de forma a evitar o recurso ao aborto clandestino - esse, um mal maior. Mas ele foi sempre o de se opor ao que viria a seguir. Por tudo isto, o discurso oficial católico perdeu - o oficial, porque na acção prática as coisas são (felizmente) diferentes em muitos casos.
5. A mesma preocupação com o início da vida deveria existir para a vida em processo. É que ela só é digna com possibilidade de cada um se poder realizar, com comida, casa e trabalho acessíveis a todos. É bom ver a Associação dos Empresários Católicos pronunciar-se "a favor da vida", como o fez no fim da campanha. Seria bom ver alguns dos nomes dessa associação recordarem-se desse compromisso na hora de fazer pressões para que as mulheres não engravidem, de decidir ordenados ou despedimentos.
Num âmbito diferente, dois aspectos merecem reflexão: a) outra razão que ajudou ao insucesso do "não" foi o silêncio mediático sobre o trabalho feito pelas associações criadas depois do referendo de 1998 e que têm uma acção meritória de apoio a grávidas, a mães adolescentes e a crianças. Muitos católicos estão empenhados nessas associações, várias delas nascidas à sombra de instituições da Igreja, mas isso é pouco divulgado e conhecido; b) Em 1984, quando a primeira lei sobre o aborto foi aprovada no Parlamento, o objectivo era o de acabar com o aborto clandestino. Oxalá que o país seja capaz, agora, de resolver o problema. Para que, daqui a mais 10 anos, não se esteja a votar num novo referendo.
P.S. - Será lamentável se o PS não legislar para haver uma consulta de aconselhamento e apoio às grávidas; não foi isso que destacados membros do partido andaram a prometer e o próprio primeiro-ministro garantiu na noite de domingo?