Muitas das posições em que me revejo foram já escritas, publicadas, lidas e ditas.
Convém, apesar disso, sublinhar alguns aspectos que me parecem dever ser reafirmados, não porque não o tenham feito melhor do que eu, mas pelo simples facto de eu achar que devem ser repetidos, sublinhados, por me parecerem fundamentais à discussão que atravessa o país.
Em primeiro lugar, este não é, de facto, um debate que oponha crentes e não crentes. Aos crentes, como a qualquer cidadão, é exigida uma intervenção social qualificada e, nessa perspectiva, fundada nos valores das Bem-aventuranças; estando atentos às realidades, competir-nos-á construir esse Reino «em pensamentos, palavras e obras». Assim, somos todos chamados a intervir, respeitando a opinião de cada um. A este propósito, aliás, valerá a pena relembrar as seguintes palavras, sabiamente escritas: «Acima do papa, como expressão da autoridade eclesial, existe ainda a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e, no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja.» Palavras de Joseph Ratzinger, ainda professor em Tubinga, oportunamente citadas por Frei Bento Domingues na sua crónica do passado Domingo,
Depois, esta não é, também, uma discussão entre adeptos da vida e adeptos da morte. Quero aqui afirmar claramente: sou pela VIDA, contra o aborto! Não me sinto é capaz de julgar, em momento algum, as circunstâncias da decisão de cada uma das mulheres que passa por esse doloroso processo e que se vê confrontada com essa solução, julgando ser a única ou a mais indicada para si. Nesse sentido, não quero, não preciso, que o Estado assuma a função punidora para que eu fique de “consciência tranquila”; a despenalização da interrupção voluntária da gravidez que defendo (até às dez semanas e só em estabelecimentos de saúde reconhecidos), não me desobrigará de continuar a lutar, na medida do que eu for capaz, por uma sociedade mais justa e fraterna, empenhando-me na promoção de uma vida plena para todas e todos: exigindo políticas de emprego e de saúde eficazes; lutando por uma educação que não esqueça a educação sexual; obrigando à implementação de sistemas de planeamento familiar, que envolvam o serviço de aconselhamento e apoio às mulheres que coloquem a hipótese de abortar (e aqui deixem-me abrir um pequeno parêntesis; estão sempre a “atirar-nos” com números: eu apenas quero relembrar aqui que, neste momento, e apesar de tudo, a França é o país da Europa com a mais alta taxa de natalidade). Entendo que a minha fé implica este meu esforço. Ganha aqui especial relevo, me parece, a experiência da igreja católica alemã, que «implicou» as suas organizações nesses serviços de aconselhamento e apoio.
Penso, até, que a manutenção do actual quadro legal mais não fará do que descredibilizar o enorme e meritório esforço que muitas mulheres e homens deste país têm já realizado, porquanto os coloca em situação de conivência com um “crime”, por não o denunciarem, sempre que a mulher resolve ir para a frente com a decisão de abortar.
Gostaria de sublinhar um último aspecto, usando as palavras de Jean Delumeau (católico e historiador francês): “Quero ainda citar uma outra reflexão do padre Quelquejeu [professor de Moral no Instituto Católico de Paris] que sublinha um paradoxo cada vez mais mal suportado pela opinião pública católica: «Sempre achei surpreendente, indefensável mesmo, que o debate em torno destas questões, que envolvem prioritariamente as mulheres, tenha sido monopolizado pelos homens: na Igreja, aliás, mais ainda que na sociedade.» O paradoxo agrava-se ainda pelo facto de serem celibatários a decidirem pelos casais. Peço encarecidamente aos membros da hierarquia que lerem estas linhas que não vejam nelas um indício de «mau espírito» mas que as entendam, isso sim, como um grito de alarme.” [Jean Delumeau, Aquilo em que acredito, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 230]