19.3.04

A paixão, de novo

Em tempos, um crítico de cinema virou-se para um jornalista que o acompanhou a uma projecção de um filme que poderia causar alguma polémica, «O Padre», para rematar: «Mas isto não é cinema!». Antes, a conversa ia animada - sobre as questões que eram colocadas pelo filme... Homossexualidade, celibato, segredo de confissão: tudo ficou no caixote da sentença definitiva: «Não é cinema»!

Já fui ver «A Paixão de Cristo», de Mel Gibson. Antes tinha comentado aqui alguns aspectos do filme, como a «extrema violência». Aquele corpo dilacerado que nos entra pelos olhos, pelos ouvidos, pelo corpo todo - é uma manifestação quase obscena de sofrimento. Meço as palavras: ouve-se o sangue a jorrar, a carne a ser rasgada.

Sim, sei que a tortura infligida aos prisioneiros de Roma era aquela. Mas ficaria este Jesus mais diminuído se a sua tortura fosse menos "gráfica"? Não creio. Este repisar da violência incomoda - digo-o agora, sem ser na condicional. E não creio ser uma questão eventual lateral: Mel Gibson assumiu-o em muitas entrevistas e há quem não desgoste deste «comprazimento com o lado meramente dolorista do cristianismo». A mim desgosta-me que seja todo um programa esse sofrimento. Sem negar a violência daquela «paixão», prefiro sublinhar (já o tinha dito, reafirmo-o) o carácter mais distintivo da Ressurreição.

Nestes apontamentos sobre o filme cabem duas ou três notas sobre o trabalho especificamente "cinematográfico": gosto da fotografia, não gosto da música (era difícil fazer melhor, depois de «Passion», a única coisa boa de «A Última Tentação de Cristo»), gosto de Maria e do seu olhar, não gosto da representação de Satanás.

Num texto longo sobre o filme, o poeta Pedro Mexia fala da credibilidade que ganham aquelas personagens com os diálogos em aramaico e latim. E sentiu que as palavras dos Evangelhos assim ditas têm «mais força», e «isso não [lhe] foi indiferente». E remata: «Mas isso, repito, não é cinema», como dizia há uns anos aqueloutro crítico de cinema.

É cinema. Se o cinema não nos interpela, não nos provoca, não nos diverte, não nos faz chorar ou rir, para que é que nos interessa o cinema? Seria uma «paixão» com pouco sentido. Como a de Mel Gibson.