[estante submersa] A minha biblioteca não é muito extensa. E, apesar de alguns esforços, na categoria de igrejas/religiões está mais ou menos como a maioria das livrarias portuguesas: um outro “best-seller”, algumas excentricidades e depois um conjunto de livros anónimos. Apesar deste quadro tinha esperanças em encontrar alguma coisa a que me “agarrar” sobre o humor, o riso – uma frase, uma ideia, uma pista. Mas nada. Melhor: quase nada. Neste assunto, como noutros, Bento Domingues está à frente. Dito de outro modo (porventura, mais correcto): está mais próximo de nós.
Em As Religiões e a Cultura da Paz (Porto, Figueirinhas, 2002), o terceiro volume das suas crónicas dominicais no Público, Bento Domingues introduz-nos (pp. 79-81) ao hino litúrgico do Evangelho de João – «No princípio era a Alegria» – para o contrapor como «uma atitude estranha ao cristianismo primitivo, mas, desde há séculos, profundamente infiltrada no seu tecido cultural»: lembra-nos frei Bento, «Nietzsche não foi o único a identificar o cristianismo com a religião do dever, do sacrifício, da tristeza e do ressentimento». Eu, hoje, também o descobri à espreita na minha estante.
[gargalhadas de Deus] «O prazer, o humor, o riso e a alegria deixaram de ser considerados os frutos normais das acções boas», escreve ainda Bento Domingues. Que viaja depois brevemente pelos que riram muito ao longo dos séculos, mas mais ainda por aqueles que olharam o riso como coisa perversa. Mas há – naquela pequena viagem – uma curiosidade histórica (estudada pela teóloga italiana Maria Caterina Jacobelli*) que fará corar puristas da liturgia da dor e do sofrimento: «O costume popular de o padre fazer rir as pessoas durante as celebrações litúrgicas, especialmente no dia de Páscoa», um «costume popular que percorreu quase toda a Europa, desde o século IX até aos começos do século XX. [...] O “riso pascal” era a linguagem popular de sintonia com a alegria da ressurreição».
[século de Fátima] Chegados ao século XX, o mundo perde o riso – as duas Grandes Guerras, o muro da Guerra Fria, os conflitos regionais que se multiplicaram, as ditaduras sanguinolentas que espalharam o terror (dos campos de concentração de Hitler aos “gulags” de Estaline, dos totalitarismos genocidas de Pol Pot ou Suharto aos voos mortíferos dos militares na América do Sul, dos fuzilamentos de republicanos em Badajoz à morte lenta do Tarrafal). Este século é também – imagem grosseira? – o século de Fátima, com uma doutrina embebida neste mundo maniqueísta e bipolar, com a sua imagem de dor e sofrimento, angústia e esperança.
[andamos sérios] A Igreja ficou “séria”. Perdeu o “riso pascal” e preferiu o Calvário à Ressurreição. Os cristãos aplaudem a Paixão de Mel Gibson e escarnecem da humanidade de Deus manifestada num quadro de Paula Rego.
Aqui chegados: enxoframo-nos com os humores dos outros sobre nós e perdemos a capacidade de rir – a auto-crítica, o “ver, julgar e agir” que nos ajuda a trilhar o caminho do questionamento, não o das certezas sofridas. Rir é bom. Rir de nós, melhor remédio é. O pior é que preferimos responder ao eventual achincalhamento com presunções sérias e dogmas de virtude pública. Soubéssemos rir da «Última Ceia» caricaturada por Herman há uns anos, com uma «Última Ceia» ainda mais divertida...
[festa] Há festa na igreja – pode parecer quase blasfémia. Mas é mais do reino da blasfémia proibir música no espaço de culto, como recentemente determinou o bispo de Viana do Castelo, que fazer do templo um local de verdadeiro encontro, conhecimento e celebração. Não se pede um “barbecue”, pede-se a descoberta da festa também nas coisas da Igreja. Na celebração, e fora dela. Andamos sérios. Nada que uma boa anedota não resolva.
* - cf. Il Risus Pascalis e il Fondamento Teologico del Piacere Sessuale, Brescia, Queriniana, 1990. Pode ainda ler-se duas perspectivas “bloguísticas” opostas sobre a matéria: no Barnabé, um texto de Rui Tavares (O tabu da sátira religiosa), e no What do you represent, um texto de Eduardo sobre «O Barnabé [que] dá catequese aos seus 900 leitores» (post de 13 de Maio).
** - este texto foi publicado na Terra da Alegria, a 19 de Maio de 2004 sobre (a falta de) humor dos cristãos. Recupero-o, agora que é o islamismo que está na berlinda.
Em As Religiões e a Cultura da Paz (Porto, Figueirinhas, 2002), o terceiro volume das suas crónicas dominicais no Público, Bento Domingues introduz-nos (pp. 79-81) ao hino litúrgico do Evangelho de João – «No princípio era a Alegria» – para o contrapor como «uma atitude estranha ao cristianismo primitivo, mas, desde há séculos, profundamente infiltrada no seu tecido cultural»: lembra-nos frei Bento, «Nietzsche não foi o único a identificar o cristianismo com a religião do dever, do sacrifício, da tristeza e do ressentimento». Eu, hoje, também o descobri à espreita na minha estante.
[gargalhadas de Deus] «O prazer, o humor, o riso e a alegria deixaram de ser considerados os frutos normais das acções boas», escreve ainda Bento Domingues. Que viaja depois brevemente pelos que riram muito ao longo dos séculos, mas mais ainda por aqueles que olharam o riso como coisa perversa. Mas há – naquela pequena viagem – uma curiosidade histórica (estudada pela teóloga italiana Maria Caterina Jacobelli*) que fará corar puristas da liturgia da dor e do sofrimento: «O costume popular de o padre fazer rir as pessoas durante as celebrações litúrgicas, especialmente no dia de Páscoa», um «costume popular que percorreu quase toda a Europa, desde o século IX até aos começos do século XX. [...] O “riso pascal” era a linguagem popular de sintonia com a alegria da ressurreição».
[século de Fátima] Chegados ao século XX, o mundo perde o riso – as duas Grandes Guerras, o muro da Guerra Fria, os conflitos regionais que se multiplicaram, as ditaduras sanguinolentas que espalharam o terror (dos campos de concentração de Hitler aos “gulags” de Estaline, dos totalitarismos genocidas de Pol Pot ou Suharto aos voos mortíferos dos militares na América do Sul, dos fuzilamentos de republicanos em Badajoz à morte lenta do Tarrafal). Este século é também – imagem grosseira? – o século de Fátima, com uma doutrina embebida neste mundo maniqueísta e bipolar, com a sua imagem de dor e sofrimento, angústia e esperança.
[andamos sérios] A Igreja ficou “séria”. Perdeu o “riso pascal” e preferiu o Calvário à Ressurreição. Os cristãos aplaudem a Paixão de Mel Gibson e escarnecem da humanidade de Deus manifestada num quadro de Paula Rego.
Aqui chegados: enxoframo-nos com os humores dos outros sobre nós e perdemos a capacidade de rir – a auto-crítica, o “ver, julgar e agir” que nos ajuda a trilhar o caminho do questionamento, não o das certezas sofridas. Rir é bom. Rir de nós, melhor remédio é. O pior é que preferimos responder ao eventual achincalhamento com presunções sérias e dogmas de virtude pública. Soubéssemos rir da «Última Ceia» caricaturada por Herman há uns anos, com uma «Última Ceia» ainda mais divertida...
[festa] Há festa na igreja – pode parecer quase blasfémia. Mas é mais do reino da blasfémia proibir música no espaço de culto, como recentemente determinou o bispo de Viana do Castelo, que fazer do templo um local de verdadeiro encontro, conhecimento e celebração. Não se pede um “barbecue”, pede-se a descoberta da festa também nas coisas da Igreja. Na celebração, e fora dela. Andamos sérios. Nada que uma boa anedota não resolva.
* - cf. Il Risus Pascalis e il Fondamento Teologico del Piacere Sessuale, Brescia, Queriniana, 1990. Pode ainda ler-se duas perspectivas “bloguísticas” opostas sobre a matéria: no Barnabé, um texto de Rui Tavares (O tabu da sátira religiosa), e no What do you represent, um texto de Eduardo sobre «O Barnabé [que] dá catequese aos seus 900 leitores» (post de 13 de Maio).
** - este texto foi publicado na Terra da Alegria, a 19 de Maio de 2004 sobre (a falta de) humor dos cristãos. Recupero-o, agora que é o islamismo que está na berlinda.