28.2.07
Overdoséries
A matéria da Bretanha
Joyau de l'art religieux breton, la vierge de Kerluan tient entre ses doigts un téton fièrement dressé, prêt à nourrir le divin enfant. La statue, en granit, avait été cassée lors de la Révolution, puis reconstruite, avant d'être enterrée par l'abbé Alfred Le Roy, curé de Châteaulin, qui décida de la remplacer par une vierge en plâtre, plus pudique. [AFP]
Bem lembrado!
Leonard Cohen, Dance me to the end of love
[ou em versão alternativa, numa curta-metragem com... Quentin Tarantino!]
27.2.07
YouChurch
[Mas] O cenário é pouco ajustado ao meio tecnológico utilizado, num formato austero que, mais do que remeter para o tempo litúrgico que se vive, denuncia uma linguagem pouco consentânea com as modernas abordagens televisivas, até de meios católicos. No enquadramento da imagem, por trás do arcebispo de Filadélfia, surgem um crucifixo e um arranjo floral muito discreto, que quase se confunde com a cortina azul escura. Um piano delicodoce a abrir e fechar compõe a "emissão". Mas antes esta austeridade, que a suposta modernidade da conversa de família de Marcelo.
Titanic
26.2.07
Devolver ao remetente (II)
Devolver ao remetente
[ou então: A probabilidade de uma certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dessa mesma pessoa (na tradução de Alessandra Balsamo para a Celta)]
A Igreja e os bebés
[Isabelle de Gaulmyn, correspondente em Roma do jornal católico francês La Croix, via Religionline, sublinhados nossos]
25.2.07
24.2.07
Saber mais de gente assim
Por vezes, somam-se ilusões. Acumulam-se fundos nas esperanças retardadas que os tribunais teimam em prolongar e uma nudez que não tememos em mostrar. [...]», in Memórias do Cárcere.
23.2.07
Filho da terra
Zeca. 20 anos depois. Ouvir, ouvir, ouvir, ler, ler, ler...
A mulher da erva
Leia-se:
Velha da terra morena
Pensa que é já lua cheia
Vela que a onda condena
Feita em pedaços na areia
Saia rota subindo a estrada
Inda a noite rompendo vem
A mulher pega na braçada
De erva fresca supremo bem
Canta a rola numa ramada
Pela estrada vai a mulher
Meu senhor nesta caminhada
Nem m'alembra do amanhecer
Há quem viva sem dar por nada
Há quem morra sem tal saber
Velha ardida velha queimada
Vende a fruta se queres comer
À noitinha a mulher alcança
Quem lhe compra do seu manjar
Para dar à cabrinha mansa
Erva fresca da cor do mar
Na calçada uma mancha negra
Cobriu tudo e ali ficou
Anda, velha da saia preta
Flor que ao vento no chão tombou
No Inverno terás fartura
Da erva fora supremo bem
Canta rola tua amargura
Manhã moça... nunca mais vem
22.2.07
21.2.07
Humildades
Esclarecido
Quarta-feira de cinzas
«...spill my ashes to the wind...»
20.2.07
Prejuízo evidente
Ainda o referendo
1. A recusa da educação sexual nas escolas, com medo dos "valores" que se perdem, da "ameaça" à família, da "redução" à biologia. O resultado desta atitude é que nem (muit)as famílias estão preparadas para educar os filhos nesta matéria nem a escola faz o que poderia fazer. Certo: há também falta de maturidade em muitos professores, predomina em Portugal uma visão estatizante da educação e o sistema de ensino não pode fazer tudo. No seu quarto texto sobre o referendo, o cardeal-patriarca de Lisboa escreveu que a educação sexual "é bem-vinda e necessária". Mas essa não é a ideia de muitos responsáveis católicos. E melhor seria que, em vez da guerrilha, se instalasse um clima de colaboração entre o Ministério da Educação, as escolas, os pais, as comunidades religiosas...
2. A recusa da contracepção e do planeamento familiar. É conhecido que a encíclica que regula esta posição oficial da Igreja, a Humanae Vitae (1968), foi publicada pelo Papa Paulo VI sob forte pressão da Cúria Romana contra a opinião de outros sectores da católicos, incluindo casais. O resultado está à vista: a aceitação exclusiva dos métodos "naturais" de planeamento familiar e a recusa do preservativo ou da pílula são um dos motivos mais fortes para que muitos católicos se afastem da Igreja. Hoje, não faz sentido continuar a investir contra esses moinhos de vento, questão de pormenor no tema mais vasto e esse sim fundamental que é o modo de viver a relação com o outro, a sexualidade e a felicidade. O planeamento familiar não é um problema do método que se utiliza, mas uma questão de como se educa para a maternidade e a paternidade responsáveis. Na prática, aliás, sabe-se que muitos católicos não ligam ao que a doutrina diz nesta matéria e que muitos agentes da Igreja - padres, bispos, mesmo cardeais - não lhe dão em privado a importância que afirmam em público.
3. No aborto, há dramas sérios que as pessoas vivem, situações que só cada um, perante a sua consciência (perante Deus, para os crentes), pode avaliar. Em 1994, o Papa João Paulo II beatificou a italiana Gianna Beretta Molla que, em 1962, decidiu levar até ao fim uma gravidez de risco, sabendo que podia morrer e deixar viúvo o marido (que a apoiou) e órfãos os outros três filhos que já tinha. Uma decisão difícil e legítima. Uma mulher que decidisse abortar para não morrer e poder, assim, acompanhar marido e filhos, não deveria merecer o mesmo respeito da parte de quem anuncia, como se diz, o evangelho da misericórdia? (Para o padre João Seabra, como disse na RTP2, a questão mais importante é insistir no "pecado mortal". Ideias infelizes como esta é que continuam a afastar as pessoas do centro da mensagem cristã.)
Outros dramas sérios podem atravessar-se à consciência de cada mulher e de cada homem na questão do aborto. Mas enquanto não se entender que cada pessoa deve ter a consciência ("santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus", como diz o Concílio Vaticano II) no centro da decisão, a Igreja continuará a lutar sempre contra o mal menor, a reboque de leis e dos costumes.
4. O discurso católico poderia ter sido o da compreensão perante o drama do aborto (por exemplo, para com os casos previstos na lei em vigor desde 1984). Poderia, mesmo, ter sido o de exigir que a lei fosse cumprida de forma a evitar o recurso ao aborto clandestino - esse, um mal maior. Mas ele foi sempre o de se opor ao que viria a seguir. Por tudo isto, o discurso oficial católico perdeu - o oficial, porque na acção prática as coisas são (felizmente) diferentes em muitos casos.
5. A mesma preocupação com o início da vida deveria existir para a vida em processo. É que ela só é digna com possibilidade de cada um se poder realizar, com comida, casa e trabalho acessíveis a todos. É bom ver a Associação dos Empresários Católicos pronunciar-se "a favor da vida", como o fez no fim da campanha. Seria bom ver alguns dos nomes dessa associação recordarem-se desse compromisso na hora de fazer pressões para que as mulheres não engravidem, de decidir ordenados ou despedimentos.
Num âmbito diferente, dois aspectos merecem reflexão: a) outra razão que ajudou ao insucesso do "não" foi o silêncio mediático sobre o trabalho feito pelas associações criadas depois do referendo de 1998 e que têm uma acção meritória de apoio a grávidas, a mães adolescentes e a crianças. Muitos católicos estão empenhados nessas associações, várias delas nascidas à sombra de instituições da Igreja, mas isso é pouco divulgado e conhecido; b) Em 1984, quando a primeira lei sobre o aborto foi aprovada no Parlamento, o objectivo era o de acabar com o aborto clandestino. Oxalá que o país seja capaz, agora, de resolver o problema. Para que, daqui a mais 10 anos, não se esteja a votar num novo referendo.
P.S. - Será lamentável se o PS não legislar para haver uma consulta de aconselhamento e apoio às grávidas; não foi isso que destacados membros do partido andaram a prometer e o próprio primeiro-ministro garantiu na noite de domingo?
Palhaçadas
[Ou então, independente-se aquilo. A ver quem, por fim, é que não teria testículos?!]
Paisagens destes dias
18.2.07
Carta aberta a uns senhores que não me querem ouvir - os bispos de Portugal
E sinceramente, gostava que esta verdade revelada fosse também examinada por cada um de vós. Em tempos, o (ainda) bispo do Funchal disse-me (numa reunião com dirigentes do MCE) que "isso dos pobres é lá em África". Quando lhe apontei para Câmara de Lobos, D. Teodoro (que sempre pactuou com o Governo Jardim) fez de conta que isso não eram coisas para estudantes discutirem. Pois é, a verdade revelada dos senhores bispos escolhe muito bem os campos que gosta de lutar! Ámen.
16.2.07
O diabo em nós
15.2.07
Edelweiss
Olha a novidade
Humanismos
E a senhora puxa a cadela para dentro de casa.
[Ouvido hoje, numa rua de Campo de Ourique.]
14.2.07
25
[descoberto em cadeia no QeP]
13.2.07
Cogumelos
[aviso: post para cagaréus e ceboleiros]
12.2.07
Sismo
[actualizado, às 15h26: ai, ai, há mesmo quem fale em castigo. Só neste país: «Quando o homem quer ser igual ou maior que Deus, terá que sujeitar-se a que esse Deus levante a sua mão protectora sobre ele. É exactamente o que irá acontecer a este país à beira mar plantado a partir de hoje. Um país que se livrou da 1ª e 2ª guerras mundiais, assim como de catastrofes naturais, acaba hoje de entrar perigosamente para o leque dos paises desobedientes à vontade do seu criador. Veremos o futuro, mas preparem-se povo desobediente e rebelde que os tempos de crise, instabilidade política e económica vêm aí. Depois não venham pedir ajuda a Deus... Vejam o exemplo da indonésia e dos restantes países que viraram as costas ao Deus verdadeiro.. estão no caos, na miséria e a sofrer as consequências da sua rebeldia. Deus condena a cultura da morte em todas as suas vertentes e o que hoje acaba de ser referendado é exactamente o avanço da cultura da morte e destruição em detrimento da vida e dignidade humana.. assim não se resolvem os problemas... assim aumentam-se os problemas.. chora Portugal que hoje deste uma grande cambalhota...»]
Responsabilidades
[Mais do que não saber perder, é perder o sentido de todo o bom senso.]
10.2.07
9.2.07
Compromissos
Mas acho que o debate este ano foi muito superior ao de 1998, em que (assumo) votei em branco, exactamente por não me rever nos radicalismos de parte a parte. Neste tempo todo não deixei cair a questão, também aqui, na altura sem referendos no horizonte, e propondo caminhos diferentes - que não o actual, de uma lei que não funciona. Este ano, mesmo com as emoções à flor da pele, houve um debate mais sólido a surgir de parte a parte, e prova disso é o excelente texto do Pedro Lomba no blogue Sim no Referendo, que está aqui "linkado" abaixo, com muitas das perplexidades e dos desconfortos que sinto com (n)esta questão. A vida não é só de uma cor, já se viu.
De um crente para quem quiser ouvir
Muitas das posições em que me revejo foram já escritas, publicadas, lidas e ditas.
Convém, apesar disso, sublinhar alguns aspectos que me parecem dever ser reafirmados, não porque não o tenham feito melhor do que eu, mas pelo simples facto de eu achar que devem ser repetidos, sublinhados, por me parecerem fundamentais à discussão que atravessa o país.
Em primeiro lugar, este não é, de facto, um debate que oponha crentes e não crentes. Aos crentes, como a qualquer cidadão, é exigida uma intervenção social qualificada e, nessa perspectiva, fundada nos valores das Bem-aventuranças; estando atentos às realidades, competir-nos-á construir esse Reino «em pensamentos, palavras e obras». Assim, somos todos chamados a intervir, respeitando a opinião de cada um. A este propósito, aliás, valerá a pena relembrar as seguintes palavras, sabiamente escritas: «Acima do papa, como expressão da autoridade eclesial, existe ainda a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e, no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja.» Palavras de Joseph Ratzinger, ainda professor em Tubinga, oportunamente citadas por Frei Bento Domingues na sua crónica do passado Domingo,
Depois, esta não é, também, uma discussão entre adeptos da vida e adeptos da morte. Quero aqui afirmar claramente: sou pela VIDA, contra o aborto! Não me sinto é capaz de julgar, em momento algum, as circunstâncias da decisão de cada uma das mulheres que passa por esse doloroso processo e que se vê confrontada com essa solução, julgando ser a única ou a mais indicada para si. Nesse sentido, não quero, não preciso, que o Estado assuma a função punidora para que eu fique de “consciência tranquila”; a despenalização da interrupção voluntária da gravidez que defendo (até às dez semanas e só em estabelecimentos de saúde reconhecidos), não me desobrigará de continuar a lutar, na medida do que eu for capaz, por uma sociedade mais justa e fraterna, empenhando-me na promoção de uma vida plena para todas e todos: exigindo políticas de emprego e de saúde eficazes; lutando por uma educação que não esqueça a educação sexual; obrigando à implementação de sistemas de planeamento familiar, que envolvam o serviço de aconselhamento e apoio às mulheres que coloquem a hipótese de abortar (e aqui deixem-me abrir um pequeno parêntesis; estão sempre a “atirar-nos” com números: eu apenas quero relembrar aqui que, neste momento, e apesar de tudo, a França é o país da Europa com a mais alta taxa de natalidade). Entendo que a minha fé implica este meu esforço. Ganha aqui especial relevo, me parece, a experiência da igreja católica alemã, que «implicou» as suas organizações nesses serviços de aconselhamento e apoio.
Penso, até, que a manutenção do actual quadro legal mais não fará do que descredibilizar o enorme e meritório esforço que muitas mulheres e homens deste país têm já realizado, porquanto os coloca em situação de conivência com um “crime”, por não o denunciarem, sempre que a mulher resolve ir para a frente com a decisão de abortar.
Gostaria de sublinhar um último aspecto, usando as palavras de Jean Delumeau (católico e historiador francês): “Quero ainda citar uma outra reflexão do padre Quelquejeu [professor de Moral no Instituto Católico de Paris] que sublinha um paradoxo cada vez mais mal suportado pela opinião pública católica: «Sempre achei surpreendente, indefensável mesmo, que o debate em torno destas questões, que envolvem prioritariamente as mulheres, tenha sido monopolizado pelos homens: na Igreja, aliás, mais ainda que na sociedade.» O paradoxo agrava-se ainda pelo facto de serem celibatários a decidirem pelos casais. Peço encarecidamente aos membros da hierarquia que lerem estas linhas que não vejam nelas um indício de «mau espírito» mas que as entendam, isso sim, como um grito de alarme.” [Jean Delumeau, Aquilo em que acredito, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 230]
8.2.07
Não chamem a polícia
7.2.07
Memória
Elogiei-o aqui me-re-ci-da-men-te várias vezes, muito antes mesmo de imaginar que iríamos escrever ocasionalmente no mesmo espaço, em defesa do Sim. Agora regressa na versão 2.0 da sua Memória Inventada.
Ambulante
6.2.07
do Lat. abruptu
Esclarecedor
Sim assim
5.2.07
O lugar da consciência
É isso que está em causa, neste referendo sobre a despenalização do aborto: o voto de cada um, e neste caso de cristãos e católicos em particular, deve ser ditado pela consciência de cada mulher e homem. O seu voto neste referendo não emana de qualquer regra absoluta ditada por Roma ou ameaçado por padres apocalípticos de Castelo de Vide.
É na racionalidade que radica a responsabilidade pelos actos das mulheres e homens deste país, neste mundo, e pela sua história. É ainda na exigência da racionalidade que se funda a abertura a um mundo ético. Graças a essa exigência, as mulheres e os homens tomam verdadeira consciência dos seus limites e podem então tornar-se responsáveis em relação ao Outro. As mulheres e os homens responsáveis podem aspirar à liberdade. Um projecto de liberdade assume e integra o erro e a falibilidade do agir humano. Só reconhecendo a valor do risco que esta busca comporta é possível às mulheres e aos homens construírem uma vida com um sentido ético e, portanto, plenamente humana.
O parágrafo anterior adaptei-o de um texto de 1992 de um grupo de católicos estudantes, não interessa agora sobre quê. Interessa para sublinhar, como o jovem Ratzinger fez, o óbvio: é na liberdade de voto que se traduz um projecto de liberdade exigente, sério. Por isso, votar Sim, no próximo dia 11, à despenalização da mulher em caso de aborto, não é ser favorável ao aborto, não é querer o aborto liberalizado, é procurar em consciência resolver um problema que dia após dia se coloca dolorosamente, sem leviandade, às mulheres.
Podia a acabar invocar Santo Agostinho que, no seu tempo, escreveu: «A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos» [referido por Jane Hurst, "A História das ideias sobre o aborto na Igreja Católica", Publicações CDD, São Paulo, 1999]. Mas serve-me de pouco este debate, não é isto que se votará a 11 de Fevereiro. O que quero acabar com o meu voto é a penalização criminal da mulher. E para isso prefiro chamar São Tomás de Aquino, que nos lembrou que (citado ontem por frei Bento Domingues, no Público) só somos verdadeiramente livres quando evitamos o mal, porque é mal, e fazemos o bem, porque é bem, não porque está proibido ou mandado.
[Publicado originalmente no Sim no Referendo]
Estilo Marcelo estende-se ao Não-sim-nãossim
- Não!
- Então, mas querem despenalizar?
- Sim.
- E alguém vos percebe?
- Cala-te.
- Ah...
4.2.07
De quem é esta frase? De Joseph Ratzinger. Quando era professor de Tubinga, o agora Papa Bento XVI escreveu um texto, pouco antes da Humanae Vitae (1968), que Hans Küng, seu colega e amigo, transcreve, agora, nas suas Memórias, e frei Bento Domingues cita hoje no texto do Público.
Por opção da mulher
1. Estava já nas últimas páginas da tese e doutoramento de Vítor Coutinho, defendida na Universidade de Münster (Alemanha) - que investiga o paradigma da fecunda interacção entre Bioética e Teologia, terminando com o elogio da interrogação -, quando fui surpreendido com as respostas ao inquérito do DN (30/01/2007): "Concorda ou não que, na defesa dos seus princípios, a Igreja Católica se envolva directamente na campanha do referendo?" Cinquenta e oito por cento rejeita o envolvimento da Igreja e trinta e quatro por cento apoia a sua intervenção.
Donde virá tanta alergia à intervenção da Igreja Católica, identificada abusivamente com a hierarquia?
Circula, há muito, a opinião de que a Igreja tem uma resposta dogmática, irreformável, para todos os problemas sem se preocupar com as perguntas e com os dramas das pessoas, sobretudo no campo da ética sexual. Ainda agora, na carta aos párocos e paroquianos da diocese de Lisboa sobre o referendo, o cardeal-patriarca expressa, logo no primeiro ponto, uma norma que, segundo alguns, não deixa espaço para o esclarecimento e para a liberdade de consciência: "A doutrina da Igreja sobre a vida, inviolável desde o seu primeiro momento, obriga em consciência todos os católicos. Estes, para serem fiéis a Igreja, não devem tomar posições públicas contrárias ao seu Magistério. O esclarecimento que os católicos são chamados a fazer sobre esta questão tem de ter em conta também os critérios de fidelidade à Igreja."
Os problemas de consciência nem sempre foram resolvidos desta maneira. Nem é preciso recuar até S. Tomás de Aquino. Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI, quando era professor de Tubinga, escreveu um texto, pouco antes da Humanae Vitae (1968), que Hans Küng, seu colega e amigo, transcreve, agora, nas suas Memórias. Só posso deixar, aqui, um fragmento: "Acima do papa, como expressão da autoridade eclesial, existe ainda a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e, no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja."
Dir-se-á que o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e actual Papa já teve práticas pouco conformes a esta sua luminosa afirmação. Mas não podemos ignorar que, de modos diferentes, toda a Igreja é docente e discente. Esta interacção é, muitas vezes, esquecida para se pensar, apenas, na palavra da hierarquia e na dos leigos que a reproduzem.
2. A corrente laicista, que deseja a Igreja fechada na sacristia, não creio que seja maioritária na sociedade portuguesa, apesar do nosso passado anticlerical. Mas a grande alergia à presença activa da Igreja talvez resulte da ideia de que ela quer fazer da sociedade e do espaço público uma sacristia. As declarações e posições pouco católicas de certos movimentos, personalidades e de alguns padres dão a impressão de quererem entregar à repressão do Estado, do Código Penal, dos tribunais, da polícia, da cadeia, as suas convicções morais - isto é, parece que não confiam na consciência das mulheres, na sua capacidade de discernimento, para percorrerem todos os caminhos necessários até chegarem a uma decisão bem informada, responsável, prudencial, no sentido que a virtude da prudência, virtude da decisão bem informada, tem em Aristóteles e Tomás de Aquino.
Ora, como escreveu o prof. Vital Moreira, "quando se fala em "despenalização" de certa conduta, tanto no discurso leigo como na linguagem jurídico-penal, o que se pretende é retirá-la do âmbito do direito penal e do Código Penal, ou seja, da esfera dos crimes e das respectivas penas. (...) Só a legalização proporcionará condições para fazer acompanhar a decisão de abortar de um mecanismo obrigatório de reflexão da mulher que o pretenda fazer". E nunca se deve confundir o que é legal com o que é moral.
Como dizia Tomás de Aquino, só somos verdadeiramente livres quando evitamos o mal, porque é mal, e fazemos o bem, porque é bem, não porque está proibido ou mandado. Todo o trabalho que a Igreja tem a fazer é, precisamente, o de ajudar as pessoas a caminharem para esse ponto de lucidez. Esclarecer as consciências não é formatá-las, não é impor-lhes uma outra consciência, não é aliená-las. Quando, nas condições e no prazo referidos, se chama "assassinas" às mulheres que recorrem ao aborto - que a Igreja e qualquer pessoa de bom senso desejam que nunca venha a acontecer -, pode estar-se a insultar, exactamente, as que sofrem os dramas que acompanham essas decisões dolorosas. A resposta ao referendo não deve extravasar o âmbito da pergunta aprovada.
3. Em última análise, a grande suspeita em relação à pergunta do referendo está neste fragmento da frase: "por opção da mulher." E porquê? Porque se julga que as mulheres não são de confiança. No entanto, foi a elas que a natureza confiou a concepção e o desenvolvimento da vida humana, durante nove meses.
Para os cristãos, esta desconfiança em relação às mulheres deveria ser insuportável. Não se lê, no Novo Testamento, que a Incarnação redentora ficou para sempre dependente da decisão de uma mulher, Maria de Nazaré (Lc l, 26-38)? Não foram as mulheres - e, segundo a cultura do tempo, não podiam testemunhar em tribunal - que são apresentadas, nos seus textos fundadores, como as grandes testemunhas do processo de Jesus? Não foram elas que testemunharam que Ele estava vivo, quando os Apóstolos já tinham concluído que estava tudo acabado? Não foi Maria Madalena a escolhida, por Jesus ressuscitado, para evangelizar os Apóstolos, para os convocar para a missão?
E certo que os homens, logo que puderam, as subalternizaram. E, até hoje, por serem mulheres, estão, à partida, excluídas de serem chamadas para os ministérios na Igreja.
No debate sobre o referendo, receio que a Igreja - ao não dar sinais claros de respeito pelo pluralismo no seu interior - perca, uma vez mais, a ocasião de se manifestar verdadeiramente católica.
3.2.07
Baú para estes dias
Ter unhas
Justiça fora nada
Perder pontos
2.2.07
Negócios da China
Condição humana
1.2.07
Lembrar o essencial:
Nem mais, nem menos
1. Eu incompetente me confesso para dizer aquilo que a sociedade civil – as famílias, as associações, as empresas, as escolas, as igrejas, os meios de comunicação social, os clubes, etc. –, assim como as diferentes expressões e poderes do Estado, deve fazer para criar um ambiente cultural, social, político e espiritual que estimule a alegria de ter filhos e de os educar com gosto. Eu incompetente me confesso para informar como é que isto seria possível, embora saiba que, enquanto ter filhos for um pesadelo, não adianta pensar muito no aumento da natalidade. O sacrifício pelo sacrifício é uma doença. Só o sacrifício que é fruto do amor possível é fonte de coragem. Mas é um exagero pedir às pessoas que desejam filhos viverem em permanente estado de heroicidade. Não adianta queixar-se da cultura hedonista pela falta de generosidade. Quando as empresas e as organizações, através de sofisticada publicidade, incitam aos prazeres mais imediatos e indeferíveis – casas de sonho, carros de sonho, férias de sonho –, teremos uma minoria regalada e a maioria acumulando desejos e decepções e adiando sempre, por estas e por outras razões, a altura para ter descendentes. Mas também incompetente me confesso para desenhar ou sugerir um modelo capaz de configurar uma outra sociedade viável.
2. Eu incompetente me confesso para sustentar que a hierarquia da Igreja fez bem ao entregar, apenas, às leis da natureza a regulação da natalidade: “A continência periódica, os métodos de regulação dos nascimentos baseados na auto-observação e no recurso aos períodos infecundos são conformes aos critérios objectivos da moralidade. Estes métodos respeitam o corpo dos esposos, estimulam a ternura entre eles e favorecem a educação de uma liberdade autêntica. Em contrapartida, é intrinsecamente má qualquer acção que, quer em previsão do acto conjugal, quer durante a sua realização, quer no desenrolar das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (1). João Paulo II repetiu até à saciedade esta herança: “As duas dimensões da união conjugal, a unitiva e a procriadora, não podem ser separadas artificialmente sem atentar contra a verdade íntima do próprio acto conjugal. (...) A Igreja ensina a verdade moral acerca da paternidade e da maternidade responsável, defendendo-a das visões e tendências erróneas, hoje, difusas.” Está muito consciente de que o Episcopado em união com o Papa é acusado de ser insensível à gravidade dos problemas actuais, de perder popularidade e ver os fiéis a afastarem-se cada vez mais da Igreja (2). Desde 1968, sobretudo por causa desta atitude perante os métodos contraceptivos, ouvimos com frequência um certo tipo de expressões: “sou católico, mas não sou praticante”; “deixei de ser católico ou não posso continuar a dizer-me católico, embora adira aos seus valores”; “Cristo sim, Igreja não”. Mas também há muitos que se guiam pela sua própria consciência, que resistem, digam ou não, “nós também somos Igreja”.
3. João Paulo II, na encíclica Evangelho da Vida (n.° 73), é peremptório: “O aborto e a eutanásia são crimes que nenhuma lei humana pode pretender legitimar. (...) Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto e a eutanásia, nunca é licito conformar-se com ela.” Parece-me que um Papa que estivesse de acordo com o aborto ou com a eutanásia devia pedir a sua demissão. No entanto, eu incompetente me confesso para, sob o ponto de vista jurídico, julgar se o Estado tem ou não direito a fazer leis que permitem o aborto. É saudável, é normal que a lei de um Estado laico não tenha que estabelecer o que é bem e o que é mal sob o ponto de vista religioso. Não desejaria ver os Estados europeus a adoptarem regimes equivalentes aos da Arábia Saudita ou do Irão: o Estado e a sociedade regidos pela lei ou pela ética religiosas. É por isso que talvez não seja um absurdo perguntar aos cidadãos, como agora, em Portugal, no referendo, se se deve responder “sim” ou “não” à despenalização da interrupção da gravidez, em estabelecimento de saúde, nas primeiras dez semanas, realizado a pedido da mulher. Não se trata de saber quem é e quem não é pelo aborto, neste prazo e nestas condições, mas quem é ou não pela penalização da mulher que aborta neste prazo e nestas condições. E inevitável a pergunta: dentro das dez semanas, já existe vida humana, ser humano ou pessoa humana? Sobre o que é a vida, sobre o que é vida humana, sobre o que é pessoa, as linguagens do senso comum, das ciências, das filosofias e das religiões não são coincidentes. E, no interior de cada um desses ramos do conhecimento, o debate não está encerrado. Para o padre Anselmo Borges, professor de Filosofia na Universidade de Coimbra, “a gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns “marcos” que não devem ser ignorados. (...) Antes da décima semana, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído. De qualquer modo, não se pode chamar homicídio, sem mais, à interrupção da gravidez levada a cabo nesse período” (3). A embriologia expressa no boneco chinês é uma pura fraude e uma obscenidade. Parece-me exorbitante ameaçar os católicos que votem “sim” com a excomunhão. Comparar o aborto ao terrorismo é fazer das mulheres aliadas da Al-Qaeda. A retórica deve ter limites. Creio que é compatível o voto na despenalização e ser – por pensamentos, palavras e obras – pela cultura da vida em todas as circunstâncias e contra o aborto. O “sim” à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, dentro das dez semanas, é contra o sofrimento das mulheres redobrado com a sua criminalização. Não pode ser confundido com a apologia da cultura da morte, da cultura do aborto, embora haja sempre doidos e doidas para tudo. Eu, agora, competente me confesso para afirmar: quando, em Portugal, o aborto for obrigatório, abandono o país. Nem mais, nem menos.
(1) Catecismo da Igreja Católica, n.° 2370, citando a Humanae vitae, 14: AAS 60 (1968), 490.
(2) Carta às Famílias, n.° 12.
(3) DN, 21/01/2007. Sobre esta questão, cf. Miguel Oliveira da Silva, Ciência, Religião e Bioética no início da vida, Lisboa, Caminho, 2006, pp. 53-85.