6.6.06

Respigar do silêncio

Bento XVI e os terríveis silêncios
João Bénard da Costa, crónica de sábado passado no Público [A CASA ENCANTADA]

“Se Deus existe, odeio-O”, diz uma personagem de Bergman quando a querem fazer aceitar, na morte do amado, a vontade de Deus. Será blasfémia? Quantos não terão dito ou sentido o mesmo no horror de Auschwitz? Mas foi nesse horror que uma rapariga de 27 anos escreveu esta coisa enorme, tão enorme como as palavras do Papa: “Se Deus deixar de me ajudar, eu estarei aqui para ajudar Deus”.

1. No Verão de 1980, estive uns dias na Polónia, cerca de dois meses antes das grandes greves de Gdansk, dos dias heróicos do Solidariedade e de Lech Walesa.
A bem dizer, a electricidade sentia-se no ar. Não dei muito por ela em Varsóvia, que me pareceu o cenário de um filme que se tivesse passado em Varsóvia antes de 1939, num jogo de espelhos semelhante ao do início de To Be or Not To Be, o mais genial filme de Lubitsch, precisa e não casualmente situado na Polónia, quando esse cenário começou a desabar.
Mas em Cracóvia pressenti encontros marcados com a História. Não, não estou a querer dizer que a Virgem Negra me tenha confiado o segredo da espatifação das “democracias populares” em menos de uma década. Ainda não conhecia videntes, nem o vitreator de Santa Maria, nem ouvira interromper-se, tão súbita quanto suavemente, a nota aguda da torre de vigia, em memória daquele que, atingido pelas setas dos tártaros, não pôde continuar a avisar do que se ia seguir. Mal conhecia a Dama de Arminho de Leonardo, cujo vago espanto e alguma perplexidade sempre me pareceram amaciar a áspera beleza dessa cidade onde os reis apenas vinham para ser coroados ou enterrados.
Também eu lá cheguei dois anos após uma coroação (mais coisa menos coisa), quando Wojtyla se tornou no Papa polaco e abriu uma era nova. Também eu lá cheguei muito antes de um enterro. Enquanto lá estive, foi dia do Corpo de Deus. E, à excepção de Sevilha, eu nunca vira em vida minha uma tal manifestação religiosa nas ruas, uma tão ostensiva afirmação do poder da Igreja Católica, Apostólica e Romana. À volta, podia haver ainda foices e martelos, estátuas de Lenine ou dos soldados soviéticos. Tudo isso era já paisagem, frente aos báculos e mitras, às cruzes e altares e à efígie de S. S. João Paulo II por toda a parte e em todos os centros. Um ano antes, João Paulo II, na primeira viagem papal à Polónia, fora visto e ouvido por mais de um milhão de polacos e durante nove dias falara em público trinta e duas vezes. Cracóvia, em 1980, era mais papal que Roma.

2. Lembrei-me muito desses delírios e dessas apoteoses durante a recente viagem de Bento XVI ao país do seu antecessor. Ainda não passaram três décadas e tanto, tanto mudou. É verdade que, a 28 de Maio, o “Papa alemão” celebrou missa, diz-se que para 900 mil pessoas, em Cracóvia. Mas a imagem que irá ficar desta visita não será por certo a de um homem de branco que sabia possível – ou que acreditava possível – a libertação dos seus compatriotas. Bento XVI já não chegou nem como libertador nem como arauto dessa libertação, da qual aliás, pela sua própria nacionalidade, dificilmente seria o símbolo vibrante que o seu antecessor pôde ser. Agora, a imagem do Papa foi sobretudo a imagem de um homem só, na terrível solidão de Auschwitz. Se, de 1979, recordamos, primordialmente, a festa e a explosão de alegria a custo contida, de 2006 recordaremos, mais do que o Papa em Cracóvia, o Papa em Auschwitz. Nas nossas memórias futuras, não o veremos, como João Paulo II, imerso na multidão, mas sozinho e inclinado, no pórtico do que simbolicamente assinala o maior horror que a humanidade conheceu.
Foi-o? A simples pergunta já é, para muitos, blasfémia máxima, porque é isso exactamente que se pretende que seja: o lugar do incomparável horror. Mas por mim confesso que essa insistência extrema me põe questões difíceis e que não sei como se comparam graus de horror. As leituras políticas das palavras e da presença de Bento XVI – e certamente que leituras dessas eram inevitáveis – escandalizam-me. Houve quem sublinhasse que o Papa tinha dito “shoah”, termo nunca ouvido da boca do seu antecessor, mas houve quem achasse que atribuir o holocausto a um “grupo de criminosos” era secundarizar a responsabilidade do povo alemão. Há sempre quem tenha cabeças ou corações frios, para o bem e para o mal. Noto-o, mas não me denoto.
Porque, depois daqueles momentos em que o Papa rezou sozinho, levemente agitado pelo vento, junto ao muro dos fuzilamentos, as palavras supremas de Bento XVI foram aquelas em que disse (cito dos jornais): “Num lugar como este, as palavras falham. No fim, só pode haver um terrível silêncio, um silêncio que é um sentido grito dirigido a Deus: porquê, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que esteve Ele silencioso? Como pôde permitir esta matança sem fim, este triunfo do demónio?”

3. Que o Vigário de Cristo na Terra – ou aquele que crê e que muitos crêem ser o Vigário de Cristo na Terra – se dirija a esse mesmo Cristo, Deus Nosso Senhor, para Lhe perguntar por que ficou silencioso, onde estava, como tolerou aquilo, é talvez o que de mais ousado e abissalmente radical me lembro de ter ouvido da boca de um Papa.
Todos conhecemos os paradoxos sobre Deus, que se é Todo Poderoso não é Todo Bondoso ou se é Todo Bondoso não é Todo Poderoso. Uma célebre passagem dos Irmãos Karamazoff foi citada nos últimos séculos vezes sem conta e vezes sem conta nos atiçaram com a história do Grande Inquisidor ou com a morte de Ivan Illich. Mas essas dúvidas, essas interrogações abissais, vinham de fora para dentro ou das margens para o centro. Em Maio de 2006, em Auschwitz, a questão veio do próprio Centro e a terrível pergunta sobre o silêncio de Deus foi a terrível palavra de um Papa.
Mas não podemos dizer que foi Bento XVI o mais terrível interrogador. Dois mil antes dele, na Cruz, Aquele que ele representa interpelou Deus – que Ele também era – da mesma maneira: “Eli, Eli, lamma sabachtani?” (“Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?”). E nunca ninguém encontrou resposta para essa pergunta impossível, em que o próprio Deus se sentiu abandonado pelo próprio Deus. A quem, ou com quem, falava Jesus Cristo na Cruz? Quem O ouvia ou quem O não ouvia? Quem não O podia ouvir ou quem não O queria ouvir? E a nossa única fuga perante estas terríveis questões é a que consiste em responder que todas elas são vazias de sentido, pois que nada que se diga sobre Deus pode ter sentido. Como escreveu Simone Weil: “Caso de contraditórios verdadeiros. Deus existe, Deus não existe. Qual o problema? Tenho a absoluta certeza que Deus existe, no sentido em que tenho a absoluta certeza que o meu amor não é uma ilusão. Mas tenho a absoluta certeza que Deus não existe, no sentido em que tenho a absoluta certeza que nada de real se assemelha ao que posso conceber quando pronuncio esse nome. Só que o que não posso conceber não é uma ilusão.”
E foi ainda Simone Weil quem sobre o mal (“o triunfo do demónio” como lhe chamou o Papa) escreveu o que ainda mais me faz deter: “Quando se ama Deus através do mal enquanto tal, ama-se verdadeiramente a Deus.” Ou: “Amar Deus através do mal como tal. Amar Deus através do mal que se execra, execrando esse mal. Amar Deus como autor do mal que estamos a execrar.”
Mas voltemos ao mistério de Deus com Deus. Não é dele ainda que nos fala S. Paulo (II, Cor, 12, 7-10) quando disse aos Coríntios que por três vezes pediu a Deus que dele se afastasse? Mas Deus lhe respondeu: “A minha Graça te basta. Porque o meu poder se manifesta na fraqueza” (“virtus in infirmitate perficitur”, como diz a Vulgata).
“Se Deus existe, odeio-O”, diz uma personagem de Bergman quando a querem fazer aceitar, na morte do amado, a vontade de Deus. Será blasfémia? Quantos não terão dito, ou sentido o mesmo, no horror de Auschwitz? Mas foi nesse horror – aprendi-o há bem pouco tempo – que uma rapariga de vinte e sete anos, que mais procurou Auschwitz do que lhe fugiu, escreveu esta coisa enorme, tão enorme como as palavras do Papa: “Se Deus deixar de me ajudar, eu estarei aqui para ajudar Deus.”

4. Refiro-me a Etty Hillesum, uma jovem holandesa que só conheço de passagem e de passagens, e que morreu em Auschwitz a 30 de Novembro de 1943. Não morreu a odiar Deus, não morreu sequer a interrogar o seu silêncio. Morreu a escrever (são das últimas palavras do seu diário) “que talvez não haja uma diferença assim tão grande entre estar dentro ou estar fora do Campo”. O que é que isto pode querer dizer é para mim tão misterioso como as palavras de Simone Weil.
Mas, recentemente, contaram-me mais. Dois meses antes, quando os alemães a levaram de Westerbork para Auschwitz – a 7 de Setembro –, conseguiu atirar da janela do comboio um bilhete postal escrito a um amigo.
Quem mo contou, disse-me: “Pensa nos mil acidentes materiais que podiam acontecer àquele rectangulozinho de cartolina sem qualquer valor, abandonado em tempo de guerra, junto a uma linha de caminho-de-ferro. Pensa nos mil acasos necessários para que alguém apanhasse esse postal e o fizesse chegar ao destinatário (um homem muito mais velho, paixão da vida de Hetty, que ela deixara doente e fraco na Holanda natal). Graças a esse gesto, de alguém que nunca se saberá quem foi, é-nos possível ainda hoje ler esse postal, onde, entre algumas palavras de amor, Hetty diz que deixaram cantando o campo de Westerbork.
Foi cantando que morreu em Auschwitz? Quem sabe? Sabe-se é que ela escreveu que “a gente não quer reconhecer que, chegados a um certo ponto, já nada se pode fazer, mas só ser e aceitar”. Onde estava o Senhor para Hetty a 30 de Novembro de 1943 em Auschwitz?
Não conto esta história, como podem pensar, para amenizar esta crónica ou para a angelizar. Muito pelo contrário. Conto-a para que o terrível silêncio e as terríveis palavras nos ensurdeçam e emudeçam na “treva mais que mística do silêncio”. n Escritor

P. S. – Uma boa notícia para o amigo que me contou Etty Hillesum. Na colecção “Teofanias” do Pe. Tolentino de Mendonça (Assírio & Alvim) vai sair, em tradução portuguesa, o diário dela.