«Os assassínios entre tribos eram resolvidos por meio de uma escala variável de indemnizações de sangue - cem camelos por um homem, cinquenta por uma mulher.
Uma máquina com quatro quilos e meio de peso, composta por onze peças desmontáveis, acabou com estas tradições ancestrais.
A vaga de carabinas Kalashnikov a baixo preço que invadiu Darfur fez diminuir o valor da responsabilidade individual na guerra. Minou o poder das autoridades tribais. Os jovens que outrora entoavam cânticos às suas vacas favoritas, agora dedicam serenatas às suas armas: "A Kalash dá cash, sem Kalash é-se trash".»
[Paul Salopek, NGM, Maio, 2008]
Este breve excerto de uma reportagem no Sael, de um jornalista que acabou preso e maltratado às mãos de combatentes pró-Cartum, é uma pequena mostra da imensa hipocrisia em que se mete a chamada comunidade internacional. O Darfur, o Chade, a Tchetchénia, o Médio Oriente, a Cova da Moura ou a Bela Vista, seriam locais mais felizes sem kalashes. Os países ocidentais e a Rússia e a China fingem-se preocupados com os conflitos que estalam aqui e ali, estendem as mãos para a ajuda humanitária, mas com uma mão tiram o que a outra dá: mantêm uma indústria cada vez mais lucrativa de armamento que, em tempo de pax romana, só pode viver destas guerras pequenas, fratricidas.
Como Portugal se sobressalta de quando em vez com carjackings e crimes na noite, enquanto o Governo promove campanhas de recolha de armas ilegais (dois anos depois da aprovação da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, que não penalizava os detentores de armas não licenciadas e que pretendessem regularizar a sua situação ou entregá-las), mantém uma forte aposta nas suas empresas de armas. A hipocrisia é deliciosa. A crise humanitária a que a dita comunidade internacional vai acorrendo resolvia-se com a proibição de armas e o não fabrico das mesmas. É claro que é mais fácil – e uma boa maneira de começar – atacar as minas antipessoais. Dá uma boa foto com uma princesa do povo. Mas falta também atacar aquelas que são as armas que fazem diminuir o valor das vidas humanas nas terras áridas do Darfur, nas ruas de Gaza, nos musseques de Luanda ou nos becos da Cova da Moura. Chamem-me ingénuo. Quero acreditar que se pode mudar um bocadinho este mundo.
[texto originalmente publicado como convidado no Corta-Fitas; retomo-o no 5.º aniversário da Cibertúlia.]
Uma máquina com quatro quilos e meio de peso, composta por onze peças desmontáveis, acabou com estas tradições ancestrais.
A vaga de carabinas Kalashnikov a baixo preço que invadiu Darfur fez diminuir o valor da responsabilidade individual na guerra. Minou o poder das autoridades tribais. Os jovens que outrora entoavam cânticos às suas vacas favoritas, agora dedicam serenatas às suas armas: "A Kalash dá cash, sem Kalash é-se trash".»
[Paul Salopek, NGM, Maio, 2008]
Este breve excerto de uma reportagem no Sael, de um jornalista que acabou preso e maltratado às mãos de combatentes pró-Cartum, é uma pequena mostra da imensa hipocrisia em que se mete a chamada comunidade internacional. O Darfur, o Chade, a Tchetchénia, o Médio Oriente, a Cova da Moura ou a Bela Vista, seriam locais mais felizes sem kalashes. Os países ocidentais e a Rússia e a China fingem-se preocupados com os conflitos que estalam aqui e ali, estendem as mãos para a ajuda humanitária, mas com uma mão tiram o que a outra dá: mantêm uma indústria cada vez mais lucrativa de armamento que, em tempo de pax romana, só pode viver destas guerras pequenas, fratricidas.
Como Portugal se sobressalta de quando em vez com carjackings e crimes na noite, enquanto o Governo promove campanhas de recolha de armas ilegais (dois anos depois da aprovação da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, que não penalizava os detentores de armas não licenciadas e que pretendessem regularizar a sua situação ou entregá-las), mantém uma forte aposta nas suas empresas de armas. A hipocrisia é deliciosa. A crise humanitária a que a dita comunidade internacional vai acorrendo resolvia-se com a proibição de armas e o não fabrico das mesmas. É claro que é mais fácil – e uma boa maneira de começar – atacar as minas antipessoais. Dá uma boa foto com uma princesa do povo. Mas falta também atacar aquelas que são as armas que fazem diminuir o valor das vidas humanas nas terras áridas do Darfur, nas ruas de Gaza, nos musseques de Luanda ou nos becos da Cova da Moura. Chamem-me ingénuo. Quero acreditar que se pode mudar um bocadinho este mundo.
[texto originalmente publicado como convidado no Corta-Fitas; retomo-o no 5.º aniversário da Cibertúlia.]