9.1.08

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[O Correio do Vouga pediu-me um texto sobre o Olímpio. Saíram estas palavras.]

Morreu o Olímpio. Desculpem a notícia crua, seca. Foi assim que a recebemos, é sempre assim que a sentimos. Um murro no estômago. Não a soube dar de outra maneira aos amigos, não a consigo partilhar de outro modo convosco, aqui nas páginas do jornal da diocese que o viu nascer e crescer.
Há uns vinte e poucos anos, o miúdo franzino, de Águeda, começou a aparecer pelo Secretariado da Juventude, no seu centro permanente, levado pela mãe Adélia. De quem com ele conviveu então sobram memórias difusas, mas já lá estava o sorriso do tamanho do mundo, o humor e a timidez.
Hoje, muitos anos depois, o Olímpio paginava livros e revistas (ou o convite de casamento mais bonito do mundo, também por causa dele, desculpem-me a imodéstia), o homem da sombra que assinava em letras pequeninas arrumadas por ele nas fichas técnicas – que, porventura, nunca lemos – de livros e revistas em que punha tanto cuidado. Este cuidado foi o mesmo que descobrimos, anos antes, no Movimento Católico de Estudantes (MCE). E também na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se candidatou aos órgãos de gestão, numa lista que fez da irreverência a sua marca. Era também a dele. Irreverente, inconformado, sempre curioso – a fé constrói-se na dúvida, ele vivia-a assim.
No MCE, primeiro em Coimbra, depois em Lisboa, já na Equipa Nacional, o Olímpio tratou de nos ensinar – olhar as coisas de modo diferente, pôr solenidade e risco nos gestos pequenos dos dias e dos trabalhos. Ou como disse o padre Tolentino Mendonça, na sua missa (lembrado pelo encenador Jorge Silva Melo, num texto no “Público”, 4/01/08), “não seremos jamais órfãos, sempre seremos herdeiros”. É assim que olho para um percurso pessoal e afectivo que se cruza com a nossa caminhada em movimento, no MCE, na Igreja, ou fora destes, na vida comum que fomos partilhando, nos livros e discos e filmes que descobrimos a dois, ou que ele – tantas vezes, descubro agora – me deu a ler, ouvir ou ver. Tinha um entusiasmo juvenil delicioso a falar de um poema lido, de uma cena vivida ou de um som escutado, e dizia-nos desse entusiasmo. Era impossível ficarmos indiferentes. As noites longas de leitura de livros, maliciosos e deliciosos, ou de audição de discos quase clandestinos (há uma geração do MCE que lhe deve o “FMI” de José Mário Branco, trauteado como senha).
O Olímpio, disse Tolentino Mendonça, “encontrava o justo espaço para a palavra na página”. Assim foi a sua vida, mal contada por mim. Faltam-me as palavras certas para o espaço justo. O amigo que vi partir abruptamente no dia 30 de Dezembro deixou-nos uma memória maior que a morte – uma memória como projecto. Ele pegou nesta simples expressão (do Edgar, se bem lembro, outro “compagnon de route”) e deu-lhe um significado, com a sua vida. No MCE, nas coisas que vivemos, nas viagens pelo país a contactar com os militantes, ele pedia que vivêssemos também essa memória: a sua exigência em desenhar com esmero um simples folheto de um encontro diocesano ou nacional; as suas anedotas (“o melhor contador do mundo”, insistiam os amigos por estes dias) para resgatarem momentos duros de debate.
Depois seguiu caminho – sempre atento às coisas da política, das artes, das letras, que é outra forma de estar atento à Cidade, que é outra forma de expressar as suas dúvidas, a nossa fé. Enamorou-se da Mariana, encantou-se com os dois filhos, o Miguel e o André. Nós, os amigos, ficamos com a memória das suas palavras. A mim faltam as palavras para dizer adeus. Sem nunca dizer adeus.